“Ela enfiava o pé na porta”: Grace Gianoukas fala do desafio de interpretar Dercy Gonçalves no teatro

Atualizado em 13 de fevereiro de 2023 às 23:28
Grace Gianoukas em “Nasci Pra Ser Dercy”

Grace Gianoukas, a multi talentosa atriz e comediante, encena em São Paulo um monólogo em que presta homenagem a Dercy Gonçalves, atriz que rompeu padrões e inaugurou uma representação genuinamente brasileira em nossos palcos.

Confira a entrevista:

DCM: Dercy Gonçalves era uma sonhadora anárquica como vc. Esse papel foi um presente ou uma encomenda que lhe vestiu bem?

Grace Gianoukas: A Dercy Gonçalves não cabia em pequenos mundos, ela praticamente foi expulsa de sua cidade natal por ser completamente incompreendida. Nesse sentido me identifico bastante com ela, porque também venho de uma cidade pequena. Eu precisava de novos horizontes, precisava expandir e descobrir coisas novas, precisava entender onde aplicar tudo que florescia em minha alma, e foi na arte que descobri. Acho que Dercy também tinha essa alma que não cabia naquele lugar. Ela de repente precisa se expandir, e se as almas não fossem imorais – a moral é relacionada ao limite do corpo – elas não teriam limites, por isso que elas se expandem, assim que a gente evolui.

Então, de certa maneira, temos de agradecer às pessoas que não entendiam Dercy Gonçalves na cidadezinha dela, quando ainda se chamava Dolores Gonçalves Costa, porque  o Brasil ganhou  uma mulher extraordinária, uma artista incrível.

Não sei se ela era anárquica, na verdade a Dolores tinha ideias às vezes bem convencionais. Acontece que ela era uma muito criativa, muito corajosa, uma mulher que ensinou muitas coisas para todas nós e que revolucionou o teatro brasileiro, com certeza, na forma de se fazer comédia nesse país. Nesse sentido me identifico muito com ela: dessa criatividade e originalidade que tinha. Ela era ela… ninguém poderia trancá-la.

Esse texto “Nasci Para ser Dercy” não foi feito por encomenda. Foi inicialmente para outra atriz que não pôde fazer, aí eu fui convidada. Foi então que descobri o quanto Dercy Gonçalves foi importante para minha vida e eu nem sabia.

Onde a obra de Dercy encontra Grace Gianoukas, a comediante e criadora hilária?

Como eu sempre digo: toda comédia vem da dor, vem do estranho, da nossa inadequação, vem da gente tentando se encaixar em limites morais, sociais e econômicos.

Acho que vem do nosso desamparo emocional diante de tantas exigências sociais.

A Dercy, como diziam, não era bonita o suficiente para ser uma vedete, embora tenha estrelado várias revistas no teatro, e na realidade isso era uma mentira, pois era uma mulher muito bonita.

Ela cantava muito bem, mas como já tínhamos muitas cantoras ela começa a brincar em cima das músicas, começa a ridicularizar e criticar. Justamente começou a rir da solidão dos apaixonados e foi se descobrindo assim, e talvez esse tenha sido o local onde se encontrou como artista.

Vc nasceu para ser Dercy? Se estivesse viva teria um papel para contracenar com ela?

Não, eu não nasci para ser Dercy. Só Dercy nasceu para ser Dercy. O roteiro do espetáculo fala de uma atriz que vai fazer um teste para o personagem Dercy, esta sempre foi a referência dela, não só como atriz e mulher. Ela se revolta com o roteiro do filme, pois acha que retratam Dercy de uma forma estereotipada. E, na verdade, eu recebi o convite do diretor & autor do espetáculo, Kiko Rizer, encarando como um grande desafio: eu não sou imitadora, não imito ninguém.

Dercy se identificava com as artistas de cinema e criou uma coisa única unindo tudo isso: a graça dela, o desajuste, o ponto de vista. E ela chegou com tudo. Então, eu nasci para ser Grace, mas vou te contar um negócio: eu não imaginava o quanto o conceito de comédia mudou desde que a Dercy apareceu na cultura brasileira. Só fui descobrindo isso à medida em que o tempo foi passando e fui estudando. Eu não sei o que a gente poderia fazer juntas, nós iríamos improvisar muito eu acredito.

Qual o tamanho e importância de Dercy Gonçalves na dramaturgia e comédia brasileiras?

A Dercy Gonçalves criou um estilo brasileiro de interpretação na comédia. Ela trouxe uma originalidade muito grande, tinha um tempo de comédia que se instalou como cultura cômica. Ela faz parte da nossa concepção de graça. Dercy trouxe o improviso para dentro das comédias tradicionais. Eram textos muitas vezes vindos de fora do Brasil para serem montados aqui,  comédias estrangeiras, encenados de forma tradicional.

Grace Gianoukas como Dercy Gonçalves

E ela – por conta dessa coisa de ter feito circo, teatro mambembe e depois as comédias de revista e shows bem populares para trabalhadores -, acabaria criando ali um estilo muito pessoal, criando uma legião de fãs. Ela lutou muito pelos direitos dos artistas, também produziu, escreveu e dirigiu. Uma mulher pioneira em muitas áreas da cultura e do entretenimento. Ela abriu portas para muitas mulheres.  Teve uma importância muito grande, acima de tudo um exemplo de mulher muito corajosa, que fazia oque tinha de fazer. Ninguém mandava nela, ela enfiava o pé na porta e não estava nem aí.

Eu quero dizer que ela nasceu em 1907, dentro de uma cultura muito repressiva com as mulheres, e ela não abaixou a cabeça. Uma grande guerreira em quem a gente tem de se inspirar.

Como foi, para você e para a cultura em geral no Brasil, essa jornada pelos últimos quatro anos de governo Bolsonaro?

Foi muito ruim para o desenvolvimento de vários projetos nacionais. Por outro lado, eu vivi minha adolescência durante a ditadura e vi coisas incríveis florescerem, as pessoas foram buscar metáforas e poesia para driblar a censura. E não há como sufocar uma coisa que é a manifestação do lúdico, da alegria e da prosperidade emocional do povo brasileiro, podem fazer o que quiserem mas a cultura brasileira jamais vai sucumbir a ideologias.

Isso é muito importante, pois agora com a volta do ministério da Cultura existem muitos projetos de cidades do interior, periferias, de muitos lugares desse país com gente talentosa para caramba, com manifestações culturais fantásticas. Eu acho que agora teremos mais troca, maior visibilidade e maior apoio.

O que passou, passou… Graças a nós que votamos pela liberdade de pensamento, pelo direito da gente ser o que é e pela diversidade desse país.

Qual recado a falecida Dercy daria hoje para o ex-presidente golpista e fujão?

A Dercy Gonçalves dizia: “Tem coisas muito boas na vida, mas as melhores coisas da vida são comer, dormir, cagar e mandar à merda tudo que não faz bem pra gente”.

Eu tenho certeza de que, se ela não concordasse com as opções, posturas e atitudes do ex-presidente, ela o mandaria para local onde ela costumava mandar tudo que não fazia bem para ela.

FICHA TÉCNICA

Nasci pra ser Dercy

Texto e direção: Kiko Rieser

Elenco: Grace Gianoukas (voz off: Miguel Falabella)

Apresentação Especial Gratuita: dia 16 de fevereiro, quinta-feira, às 21h

Com interpretação em libras e debate com elenco e direção após o espetáculo. Retirar os ingressos uma hora antes do início do espetáculo- sujeito a lotação

Teatro Cacilda Becker – 198 lugares

Rua Tito, 295 – Lapa

Tel: 11 3864-4513

Duração: 80 min