Entenda por que a ação de Bolsonaro no caso Marielle caracteriza obstrução de justiça. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 3 de novembro de 2019 às 8:34
Jair Bolsonaro. Reprodução TV Globo

Na avaliação de três profissionais do direito — dois advogados criminalistas e um dos juristas mais respeitados na disciplina de processo penal –, Jair Bolsonaro cometeu, em tese, crime de obstrução de justiça, ao se apropriar de prova que poderia ser usada em investigação criminal.

“Nós pegamos, antes que fosse adulterada, ou tentasse adulterar, pegamos toda a memória da secretária eletrônica que é guardada há mais de ano. A voz não é a minha”, disse Bolsonaro, hoje, a jornalistas.

“Isso tem um nome, apenas um: OBSTRUÇÃO DE JUSTIÇA”, escreveu o advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho, fundador do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

O jurista Afrânio Silva Jardim também se manifestou:

“Ora, se ninguém sabia, até pouco tempo, que um dos assassinos da Marielle e do Anderson morava no condomínio em que mora o Presidente e, com mais razão, ninguém sabia também que motorista do assassino tinha entrado no respectivo condomínio no dia do crime, por que o Presidente pegou e guardou a secretária eletrônica do condomínio ‘Vivendas da Barra’? Ele já sabia de tudo?”, disse.

Sim, ele já sabia. E quem contou que já sabia foi o próprio Bolsonaro, que teve encontro com o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, em 9 de outubro, três semanas antes do caso se tornar público. Em relação à citação de seu nome no inquérito que apura a morte de Marielle Franco, o que Bolsonaro fez nesse tempo?

Não se sabe. O que se tornou público é que ele teve um encontro extenso num fim de semana com seu advogado, com pauta não divulgada, e o síndico do condomínio em que tem casa entregou à Polícia e ao Ministério Público cópia do que seriam os registros de áudio da portaria, de um ano e sete meses atrás.

Agora, Bolsonaro diz que também tinha se apropriado desses registros. Quando fez isso? Não contou, mas não é crível que, depois de ser informado privilegiadamente de que poderia ser investigado, tivesse ficado de braços cruzados. Os registros de áudio permaneceram em poder do MP e da Polícia sem passar por análise pericial até o dia em que a reportagem do Jornal Nacional foi publicada.

No dia seguinte, então, houve uma perícia, que teria sido muito rápida e se limitado ao confronto da voz de Ronnie Lessa. Não houve perícia para saber se, no conjunto, os registros de áudio sofreram adulteração. Ou seja, mesmo sendo a voz de Ronnie Lessa, esta poderia se referir a outra chamada, não especificamente ao do comparsa Élcio de Queiroz, naquela tarde de 14 de março do ano passado.

A prova se tornou imprestável com a declaração de Bolsonaro de que se apropriou dos registros.

Ouvido pelo DCM, o criminalista Fernando Fernandes explicou que a situação é grave:

“A investigação deve acessar prova sem alterações, e assim apropriar-se de prova pode constituir uma forma de obstruir a investigação. A medida para preservar a colheita deveria ser judicial e de espelhamento. Caso tenha ocorrido cópia sem os cuidados periciais ocorreu interferência na prova e isso é grave e inadmissível, podendo configurar abuso que em um investigado acarretaria prisão preventiva.”

Com Dias Toffoli calado até o momento, embora tenha sido um dos primeiros a tomar conhecimento de que Bolsonaro havia sido envolvido no caso, não se deve esperar medida tão dura quanto a prisão de Bolsonaro. Mas, fosse outro o réu, já se estaria discutindo, concretamente, a adoção de uma previdência como esta.

Fernando Fernandes explica que Bolsonaro poderia ter tomado providência para se proteger e, ao mesmo tempo, não correr o risco de ser acusado de obstrução de justiça:

“O presidente ou quem quer que seja poderia ter requerido uma medida de antecipação de prova para o espelhamento e preservação. A medida de acessar exige hoje a apreensão dos computadores e perícia. Se o acesso tenha gerado possibilidade de anulação do estado natural da prova, pode ter ocorrido motivos que em réu comum geraria uma prisão preventiva”.

Afrânio Silva Jardim complementa:

“Ninguém pode se apropriar de elementos de prova de qualquer crime. Cabe à polícia arrecadar e apreender tudo o que possa interessar à prova da existência material de uma infração penal, bem como tudo o que possa permitir a elucidação de sua autoria ou participação (artigo 6, incs. II, III e VII do Cod.Proc.Penal). Na melhor das hipóteses, o ex-capitão deveria entregar, imediatamente, o material à Polícia Civil do E.R.J, ou ao Ministério Público, acompanhado de testemunhas.

Por fim, afirma:

“Esta conduta confessada é uma afronta ao nosso sistema de investigação policial e um verdadeiro desrespeito ao Ministério Público do E.R.J. Torna quase que imprestável qualquer perícia oficial no material tirado pelo então suspeito.”

Desde que o caso se tornou público, Bolsonaro tem se comportado como se estivesse acima da lei e, portanto, com a certeza da impunidade. Hoje, além de declarar que se apropriou de prova, revelou que está conduzindo a investigação da Polícia Federal sobre o inquérito solicitado à Procuradoria Geral da República por seu ministro da Justiça, Sergio Moro.

“A Polícia Federal, com assessoramento do MP Federal lá da seção do Rio de Janeiro, vamos ouvir o porteiro, vamos ouvir aí o delegado também, delegado que é muito amiguinho do governador, logicamente gostaríamos também que o governador participasse.”

Veja o vídeo abaixo e confira que ele disse mesmo: “Vamos ouvir o porteiro” e “vamos ouvir o delegado”.

Bolsonaro poderia ser enquadrado por obstrução de justiça, usurpação das funções da Polícia e do Judiciário e também por intimidar testemunha e um agente público.

É um escândalo, mas, no Brasil de 2019, há uma família no centro do poder que acredita que pode tudo.

Até quando?