Entrevista: sabatinamos a anticandidata ao STF Beatriz Vargas Ramos. Por Nathalí Macedo

Atualizado em 21 de fevereiro de 2017 às 9:32
A anticandidata
A anticandidata

A anticandidatura da professora Beatriz Vargas Ramos (UnB) ao STF não almeja colocá-la de fato numa cadeira do Supremo. Almeja muito mais: trata-se de um manifesto político contra as indicações de Michel Temer para o cargo deixado pelo ministro Teori Zavascki, cuja morte ainda é um mistério, e principalmente uma manifestação de insatisfação contra o acovardamento do STF no processo de impeachment.

Beatriz é doutora e professora de Direito da UnB – e a primeira jurista que conheço que não fala juridiquês. Enquanto a maioria arrota tipificações e latinismos, ela fez questão de conduzir a nossa conversa com simplicidade, objetividade e clareza.

Em um país sem mulheres nos ministérios e cuja volta do primeiro-damismo é uma vergonha para o século, Beatriz Vargas Ramos é um nome para guardar.

1. Como surgiu a idéia da anticandidatura?

A idéia da anticandidatura surgiu quase que como uma obrigação diante do desfile público dos nomes dos apadrinhados para ocuparem a vaga deixada pelo ministro Zavascki no Supremo. A imprensa noticiando os nomes de preferência do governo Temer para esse cargo nos colocou na obrigação de dar uma resposta pública contra o atraso que significa cada um daqueles nomes.

2. Como um manifesto político, essa anticandidatura reflete, na sua opinião, a insatisfação da maioria da classe jurídica?

Eu não saberia lhe dizer se a maioria da classe jurídica estaria apoiando o manifesto, mas ele contou com a adesão de mais de cinco mil pessoas, dentro e fora do campo jurídico. Universitários, professores, advogados, juízes, Ministério Público, políticos, pessoas de representação na cultura brasileira, artistas, músicos, intelectuais, enfim. A ação da anticandidatura extrapolou em muito a estrita classe jurídica. O que eu acho, sem querer fazer essa afirmação (de que temos o apoio da maioria da classe jurídica), é que nós contamos com a adesão de uma parte importante do campo jurídico, possivelmente até pessoas que vêm do centro desse campo.

3. Quais as principais razões na sua opinião para o acovardamento do STF no processo de impeachment?

Essa não é uma pergunta fácil de responder. As razões, ou a razão oficial, que o Supremo invocou para não fazer uma análise que não fosse restrita à ritualística do processo, foi que ele não tinha competência para a decisão de mérito, nesse caso. Me parece um fundamento insuficiente, porque todo mundo sabe que não compete ao Supremo decidir o processo de impedimento contra a presidenta da República. Essa competência é do Congresso Nacional, especificamente do Senado, que exerceu esse papel.

Esse argumento soou insuficiente, não convincente. Isso, então, levanta algumas possibilidades de análise do papel do Supremo: ele poderia, pela função que exerce, cotidianamente, no controle da legalidade das ações condenatórias, ter entrado no exame sobre se a imputação feita à presidenta Dilma corresponderia ou não à definição de crime de responsabilidade. Isso não seria entrar no mérito.

Ao não fazer isso, então, há possibilidade de a gente traduzir a sua omissão, nesse caso, ou como uma adesão política – uma concordância com o afastamento, lavar as mãos, portanto, deixar que a maioria política decida, sem exercer o controle de legalidade no processo, ou, talvez, um certo receio de tomar uma decisão contra-majoritária, ou seja, decidir de forma contrária ao interesse político predominante no Congresso Nacional. Acho até que decidir também desafiando uma certa opinião pública, que já tinha sido montada, contrária à manutenção da presidenta Dilma no cargo. A gente sabe que isso foi resultado de uma campanha, uma campanha que ganhou a grande mídia, e que bombardeou os brasileiros, em dias seguidos, com mensagens atribuindo à presidenta Dilma e aos mandados do PT a responsabilidade pela corrupção, pela crise econômica, enfim. Acho que há, aí, um conjunto de fatores que foram manipulados politicamente contra a manutenção do mandato de Dilma Rousseff.

4. Diante disso, e diante do fato de termos sofrido um golpe também jurídico, quais são os caminhos, na sua opinião, para que tenhamos um STF mais ético e consciente de sua função de controle da legalidade?

Não podemos deixar de reconhecer que este STF também tem tomado decisões importantes e positivas no cumprimento desse papel de tradução dos direitos fundamentais, né? Aqui nós podemos indicar, por exemplo, a questão do aborto (não é crime até o terceiro mês, é um avanço) e o reconhecimento da união homoafetiva.

Não sei descrever os caminhos para ter um STF “mais ético, mais responsável, e que cumpra o seu dever de guardião da Constituição”, como você pergunta. Penso que esse caminho passa pela sensibilidade do STF e do Judiciário em geral em relação às questões sociais, talvez também pelo fim dessa super-exposição midiática dos seus julgamentos, quem sabe também passe por medidas que tornem o processo de indicação e nomeação algo menos “de bastidor” e mais aberto a alguma participação dos cidadãos, com debate de ideias e até programas, quem sabe? Esse é exatamente o debate que queremos abrir.

Acho que está em construção. Talvez falte maior capacidade de autocrítica aos juízes em geral. Não é nada fácil ser juiz. É uma missão dura e solitária. Penso que os melhores juízes são aqueles que têm a capacidade de “desconfiar de si mesmos” ou de tentar tomar distância de si mesmos na hora de decidir. Para isso tem a norma, há os princípios constitucionais, o juiz tem que se saber limitado (em sua vontade subjetiva) pela norma. Esse é um debate difícil.

5. Quais as principais razões pelas quais Alexandre de Moraes não é um bom nome, em sua opinião?

Alexandre de Moraes não é um bom nome porque não tem perfil de juiz. É um homem de partido, defensor do “projeto Temer de governo”, não tem isenção para tomar parte dos julgamentos derivados das investigações da Lava-Jato. Como gestor da segurança pública em São Paulo e como ministro da Justiça deu demonstrações de que sua concepção de política de segurança ou criminal é conservadora, tradicional, punitivista, muito centrada na crença de que a pena criminal “resolve” os problemas de segurança.

Ele chegou a dizer “menos pesquisas e mais armas”, numa demonstração inequívoca de que sua concepção de política nessa área se faz com o Estado Policial. Acho que estava jogando com a plateia para agradar os punitivistas.

Ele conversa só com a bancada da bala e rejeita o diálogo com os críticos do sistema tradicional. Ele fechou essa porta completamente. Como vai se comportar como ministro do Supremo? Vai defender as violações contra as garantias de defesa?

As pesquisas que ele tanto despreza mostram exatamente o fracasso dessa política centrada no rigor penal e nas exclusivas ações de força que, não raramente, se desbordam em violência e graves violações de direitos. Ele representa tudo que tem fracassado em matéria de política criminal no Brasil (inclusive na questão das drogas).

Aquela cena dele de facão na mão “atacando” um plantio de maconha é o símbolo dessa crença na fracassada “guerra às drogas”.

Mal sabia ele que estava podando o cultivo, ao invés de destruí-lo, né? Ele encenou o que de verdade representa a estúpida guerra às drogas: o facão do proibicionismo apenas potencializa os lucros exorbitantes do tráfico e não chega nem perto de resolver a questão de saúde pública que está no centro das preocupações com o consumo – ou o abuso – de drogas. Pensamos que Temer poderia ter indicado pessoas mais equilibradas e abertas ao convencimento, ao diálogo, enfim.

6. E como essa guerra às drogas atinge a população negra e periférica no Brasil?

Atinge diretamente. Os jovens negros e pobres são os que enchem cadeia por causa do tráfico. É a população mais vulnerável à ação dos agentes policiais, porque não dispõem de muitos meios de resistir a esse processo criminalizador.

51% da população brasileira é negra. Dentro dos presídios, negros/negras compõem a impressionante cifra de 67%. O presídio brasileiro é uma grande senzala. O tráfico, por sua vez, corresponde, sozinho, a 27% do total da população prisional. Entre as mulheres, as prisões por tráfico respondem por 63% por cento do total. É a maior do que a soma de todos os demais crimes.

O número superior de prisões dos jovens negros e pobres não quer dizer que são eles os maiores criminosos. Quer dizer que eles é que são os mais vulneráveis à ação policial (e não apenas policial, né? O Judiciário também é racista). Eles é que são cooptados pelo tráfico, até mesmo como “alternativa” de sobrevivência material. A exclusão social corresponde à inclusão no sistema penal.

7. Voltando ao golpe, o Brasil sofreu em 2016 um golpe machista?

O golpe teve ingredientes machistas, sem dúvida. As ações feministas são muitas e em muitas frentes. Acho muito importantes as ações locais, as ações pequenas, em cada frente, de protesto, de denúncia, de discussão em cada ambiente, sindical, universitário, cultural, institucional etc. Essas ações locais se amarram e se relacionam aos grandes temas e aos outros tantos coletivos locais, formando movimentos regionais, nacionais, com parcerias com outros movimentos e partidos políticos.