“Escândalo da orgia revela hipocrisia dos governos ultraconservadores”, diz ao DCM cientista político húngaro

Atualizado em 3 de dezembro de 2020 às 20:49
Eurodeputado József Szájer, co-fundador do partido de extrema direita da Hungria Fidesz, foi flagrado em orgia com 20 homens em pleno confinamento social. Crédito: Foto: PETER KOHALMI/AFP

Foi mais do que uma orgia, uma mochila cheia de drogas e uma tentativa de fuga da polícia, chamada para interromper uma festa em pleno confinamento social. O escândalo que veio à tona esta semana envolvendo József Szájer, eurodeputado ultraconservador, amigo fiel e aliado do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, foi revelador.

“O cinismo se tornou transparente para muitas pessoas”, avalia András Bozóki, professor da Universidade Central Europeia (CEU), forçada ao exílio em Viena por perseguição do governo de extrema-direita.

O cientista político já observa os impactos na sociedade húngara, “uma espécie de momento de libertação dos que criticavam o comportamento hipócrita deste governo ultraconservador”.

Ao Diário do Centro do Mundo, o intelectual fala em nome de seus colegas, que não ousavam mais criticar o governo.

“Devo falar também em nome de outras pessoas, que têm que ser cautelosas em relação às suas próprias sobrevivências existenciais”.

Ele descreve o que é produzir ciência num país cujo governo aparelha cada vez mais instituições, os mecanismos de estigmatização contra a população LGBT, muçulmana e judia e as relações entre autoritarismo e neoliberalismo.

Explica também como a derrota de Trump afeta a internacional autoritária que Viktor Orbán sonhava em criar, contando com Bolsonaro, e as novas pressões da União Europeia.

O professor András Bozóki

DCM: Viktor Orbán é apontado por intelectuais húngaros, ONGs e a União Europeia como o principal responsável pela degradação do Estado de Direito no seu país. O senhor concorda com essa afirmação?

András: A Hungria não é mais uma democracia, enquanto regime político. Essas organizações são os últimos redutos de autonomia na Hungria.

O governo atualmente tenta controlar as universidades, eliminar a autonomia delas, de instituições culturais, teatros… Portanto, o que o incomoda nelas é a autonomia.

A autonomia social, educacional ou cultural são questões secundárias. (O governo) tenta controlar a sociedade civil.

DCM: Como é ser pesquisador hoje na Hungria?

András: Eu estou numa posição privilegiada, pois sou professor na Universidade Central Europeia, que é uma universidade privada, financiada por George Soros.

Nos últimos dois anos, também somos considerados como um inimigo do Estado e fomos expulsos do país. Eu vivo na Hungria mas trabalho em Viena, na Áustria, deslocando-me e às vezes passando mais tempo em Viena.

Portanto, tenho essa dupla perspectiva, dentro e fora. Isso me ajuda a ter diferentes perspectivas.

Certas vezes, o que é mais difícil é explicar aos europeus ocidentais que algo que é inimaginável pode acontecer no coração da Europa, num Estado-membro da União Europeia.

Ninguém acreditava nisso dez anos atras e ainda está acontecendo, um Estado autoritário emergindo. Eu não diria uma ditadura, mas uma espécie de regime híbrido, que tenta manobrar entre entre o ocidente e o leste e vender seu pertencimento à União Europeia a parceiros do leste e tirar proveito do fato de ser membro.

DCM: Vendê-la para quais países do leste?

András: Quando Viktor Orbán chegou ao poder, ele declarou que deveria haver uma abertura ao leste quando se é membro da União Europeia.

Ele deu passos definitivos em direção à Rússia de Putin, à Turquia de Erdogan e ao Azerbaijão de Aliyev. Essas são as ameaças políticas atualmente. E também, numa menor medida, alguns líderes da Ásia Central.

Ele também tem enormes esperanças nas relações com a China, mas em geral eu penso que essa abertura ao leste foi um fracasso economicamente e altamente questionável politicamente.

Ele quer garantir benefícios desses Estados autoritários do leste para sua sobrevivência política, mas tem sido muito difícil para ele encarar sua nova situação na União Europeia.

Contrariamente às suas expectativas, Trump perdeu as eleições americanas e Biden venceu. Então suas antigas condições favoráveis a líderes semi-autoritários vão se esvaindo.

DCM: O senhor está se arriscando ao denunciar e criticar o governo Orbán?

András: É uma boa pergunta porque muitos dos meus colegas, que são empregados na universidade estatal e instituições controladas pelo Estado, evitam criticar o governo abertamente.

Eles deletam posts no Facebook ou não expressam nenhuma opinião política publicamente.

Neste sentido, é como nos anos 1980, quando as pessoas tentavam compartilhar opiniões políticas com a família ou em pequenos círculos.

Quanto a mim, estou numa posição um pouco diferente porque não sou dependente economicamente do Estado, porque trabalho numa universidade privada. Portanto eu não posso me restringir. Eu não me restrinjo.

Penso que devo falar também em nome de outras pessoas, que têm que ser cautelosas em relação às suas próprias sobrevivências existencial.

DCM: A comunidade judaica está sofrendo algum tipo de estigma na Hungria ou ações ainda mais violentas do governo Orbán?

András: Eu acredito que não. Recentemente, campanhas contra George Soros desencadearam algumas mensagens antissemitas. Mas em geral não é o caso.

Orbán, em si, não é uma pessoa antissemita, mas ele sente que precisa dos votos antissemitas. Então sendo o líder pragmático que ele é, ele emite algumas mensagens dúbias.

Mas é difícil entender a constituição do seu próprio eleitorado. Ele não fala dos judeus em si. Há elementos “estrangeiros” que não se identificam com a causa dos húngaros. É uma linguagem cifrada. No entanto, ele é oficialmente amigo de Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel.

Há uma comunidade hassídica em Budapeste, a ultraortodoxa, que conta com o apoio do governo. Ele tem uma relação muito mais tensa com a comunidade “neológ” judaica em Budapeste, ou seja não a ala ortodoxa mas a reformista, que está criticando-o.

Eu não vejo um patrocínio governamental ou antissemitismo popular na Hungria. O principal alvo são os imigrantes muçulmanos, então eles mudaram de foco. Não é tanto antissemitismo, é mais uma islamofobia que determina sua posição.

DCM: Orbán promoveu a eliminação dos moradores de rua mandando-os para a prisão. Há uma relação entre neoliberalismo e seu autoritarismo?

András: Sim, é uma boa pergunta porque, na retórica, ele é muito mais nacionalista. Ele tenta reduzir a presença de bancos e investidores estrangeiros em algumas áreas, lugares que podem satisfazer seu próprio círculo, seus amigos políticos e aliados. Oligarcas locais podem se beneficiar deles.

Por outro lado, ele é bastante a favor da presença de fábricas de automóveis alemães na Hungria. A Audi está aqui. A Mercedes-Benz está aqui. A BMW está planejando construir uma fábrica na Hungria.

Esses setores de grandes negócios se beneficiam do apoio do primeiro-ministro e obtêm isenções fiscais. Ao mesmo tempo, o Estado tem limitado o sistema de saúde e o tradicional modelo de Estado de bem-estar social.

Nesse sentido, a regulação de moradores de rua pela polícia, evacuados pela polícia, me faz pensar no liberalismo tanto do ponto de vista econômico quanto de política social.

Mas saiba que Orban não é um homem ideológico. Ele não é movido por nenhuma ideologia em particular. Ele não é liberal nem antiliberal. Ele está usando a melhor ideologia possível no momento.

Ele está interessado em poder, é um político do poder e não um político ideológico. Contudo, é um político inescrupuloso usando nacionalismo e populismo étnico e às vezes o neoliberalismo, ou o que quer que seja útil para ele.

DCM: Como lê a detenção do eurodeputado ultraconservador József Szájer depois que ele foi flagrado desrespeitando as regras de confinamento social para participar de uma orgia com 20 homens e drogas?

András: Foi amplamente discutido nas redes sociais na Hungria. As pessoas estão rindo disso. Foi uma espécie de momento de libertação dos que criticavam o comportamento hipócrita deste governo ultraconservador, anti-LGBT, antigênero, encontrando-se numa situação extremamente desconfortável.

Então é uma grande fonte de humor. As pessoas gostaram muito desse momento, independentemente da filiação partidária porque a hipocrisia é revelada.

Isso deve contribuir para uma libertação mental dos ativistas sociais e políticos húngaros.

Pessoalmente, é uma tragédia para este homem. Ele estava servindo fielmente Viktor Orbán e o Fidesz há 30 anos, mas vivia à sombra das mentiras por toda sua vida.

Formalmente, ele vive um casamento. Mas acredito que agora ele deve se libertar.

Ele defendeu um sistema de valores que não manteve durante um certo tempo. Então, essa espécie de cinismo se tornou transparente para muitas pessoas. Isso deve servir para abrir os olhos de muitas pessoas na Hungria.

DCM: Como o governo Orbán, membro do partido fundado por Szájer, reagiu a esse escândalo?

András: Obviamente disseram-no para renunciar e deixar o partido Fidesz.

Szájer anunciou que iria renunciar no Parlamento Europeu, em Bruxelas, e deixou o partido do qual foi membro de 1988 a 2020. Portanto 32 anos, digamos quase metade de uma vida.

Orban comentou sobre isso muito brevemente, apesar de que era seu velho amigo e aliado.

Ele apenas disse que aqueles que não respeitam os valores da “nossa” comunidade devem “nos” deixar e que agradecia-lhe pelos serviços prestados nas últimas décadas, mas que acredita que é a coisa certa a fazer; renunciar e deixar o Fidesz.

Ele não demonstrou nenhuma emoção. Foi frio. “Muito obrigado e agora você sai”. E que “respeitamos sua decisão de sair, que é a coisa certa a fazer”. É claro que ele disse para (Szájer) sair.

DCM: Mas ele provavelmente sempre soube de tudo…

András: Eu acredito que sim. Há especulações de que serviços secretos usaram essa oportunidade para atacar Orbán nesta situação particular.

A Hungria estava vetando o orçamento (da União Europeia) e há uma tensa relação entre os Estados-membros.

Eu não tenho certeza. Mas tivesse participação de serviços secretos, com sua ajuda, eu acredito que no final o resultado é positivo, independentemente de quem o fez.

Talvez foi apenas uma coincidência de acontecimentos, talvez houve intenções políticas por trás, mas eu acho que é secundário. A questão é o impacto político, esse foi o fator maior.

DCM: Por que Viktor Orbán era um dos únicos líderes europeus presentes na cerimônia de posse de Jair Bolsonaro?

András: Orbán teve a ideia de construir uma cooperação internacional de líderes antiliberais.

Então ele acreditou, em 2017, pouco depois da eleição de Donald Trump e do Brexit, que poderia fazer uma grande aliança, de Trump a Putin, de Erdogan a Kaczyński, de Salvini, na Itália, a Strache, na Áustria.

Ele estava muito feliz com Bolsonaro porque, de uma certa maneira, ele é um neoliberal, mas também vem do exército, de certo modo governa pela força. Portanto, Orbán teve simpatia em relação a ele.

Ele esteve no funeral de Tudjman, controverso presidente croata, em 1999, quando era um jovem primeiro-ministro. Então ele gosta de se inscrever contra o correto para se fazer mais relevante na arena internacional.

DCM: Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas, seu primeiro-ministro está enfraquecido?

András: Eu acredito que sim. Trump perdeu. Orban acreditou na sua vitória. Ele se investiu politicamente em Trump.

Ele estabeleceu relativas boas relações. Trump mandou um embaixador a Budapeste que se tornou um grande amigo de Orbán.

A nova administração dos Estados Unidos vai ser muito mais crítica, pelo que parece, a Orbán. Teremos que estar mais preocupados com a questão europeia do que Trump fez. Trump não era muito amigável em relação à Europa. Ele não incluiu valores democráticos na sua política externa.

Em Budapeste, há uma esperança de grupos pró-democracia, partidos de oposição, de que o novo embaixador entenderá a verdadeira situação da Hungria.

DCM: A condicionalidade que a União Europeia quer impor à Hungria ao respeito do Estado de Direito para que o país obtenha acesso aos subsídios da crise do coronavírus é um meio efetivo de pressionar o primeiro-ministro húngaro?

András: Sim, porque é claro que o Estado de Direito não está sendo respeitado na Hungria.

A condicionalidade de subsídios é muito desconfortável para ele porque tornaria claros os abusos de poder que ele cometeu nos últimos dez anos. Está claro que ele está disposto a pagar muito dinheiro, a fazer empréstimos de outras fontes que não a União Europeia, para evitar todo tipo de controle externo sobre sua política.

Ele não tolera nenhuma atividade independente e autônoma no país. E ele não aprecia que políticos da União Europeia tentem controlá-lo ou constrangê-lo, de fora.

Neste momento, ele está sempre se referindo à soberania, a soberania do país, que na verdade é a soberania dele, seus jogos de poder.

Do ponto de vista democrático, essa condicionalidade foi uma boa ideia pois aqueles que pagam seus impostos no ocidente devem criticar que seus governos patrocinem um governo antidemocrático dentro da União Europeia.

Isso deve ser revisado e contrabalanceado. Isso vai resultar provavelmente num aprimoramento e melhor funcionamento da União Europeia. Se a lição for aprendida, a União Europeia vai se beneficiar dessa experiência desconfortável.

Willy Delvalle
Mestre em Sociologia e Filosofia Política pela Universidade Paris 7. Formou-se em Comunicação Social: Jornalismo na Unesp. Em São Paulo, foi professor voluntário de português a imigrantes e refugiados. Atualmente, cursa mestrado em União Europeia e Globalização na Universidade Paris 8