Essa criança que morreu ao cair do prédio poderia ser eu. Por Djamila Ribeiro

Atualizado em 4 de junho de 2020 às 15:49
Djamila Ribeiro. Foto: André Zanardo/Reprodução/Facebook

Publicado originalmente no perfil de Facebook da autora

POR DJAMILA RIBEIRO, escritora, filósofa e ativista

Estou consternada com mais esse caso de descaso com a vida de pessoas negras no país. É importante relembrar que a primeira morte de coronavírus registrada foi de Dona Cleonice Gonçalves, empregada doméstica que estava trabalhando na casa da patroa que voltara infectada de uma temporada na Europa, mas que mesmo assim manteve-a trabalhando.

Agora, a senhora Mirtes Renata, outra doméstica que estava trabalhando na casa da madame mesmo sob isolamento, chora a morte de seu filho, Miguel Otávio Santana da Silva, uma criança de cinco anos. Sem ter com quem deixar a criança, Mirtes o levou para o serviço e, em dado momento, teve que passear com o pet da patroa, quem deveria olhar a Miguel durante a volta. Pois quando voltou do passeio, descobriu que seu filho foi atrás dela, sem a menor supervisão da patroa.

A criança se perdeu, acabou se desequilibrando e caiu de nove andares. A patroa foi levada até a delegacia, pagou R$ 20 mil de fiança, e voltou para casa. Já a empregada doméstica agora amarga a maior dor de todas.

Há uma série de absurdos nesse caso. A começar por: estamos em um isolamento! Ora, então por que a empregada doméstica estava convivendo sob o mesmo teto que a patroa? Ora, de herança direta da escravidão, o serviço doméstico é uma tarefa historicamente relegada às mulheres negras no Brasil.

Alvo de todo tipo exploração para manutenção em condições abusivas de trabalho, vemos a repetição diária da lógica Casa Grande-Senzala, em que as mulheres escravizadas não podiam ficar com seus filhos, pois tinham que cuidar e criar os filhinhos da sinhás. É uma profissão que apenas recentemente foi regulamentada sob forte oposição de grande parcela da sociedade.

Segundo informações da mídia, o nome da patroa é Sari Corte real. Seria cômico senão fosse trágico. A lógica da Casa Grande e Senzala ainda se mantém. Toda solidariedade a essa mãe que chora a morte do seu filho, mais uma vítima do racismo brasileiro.

Minha mãe, avó, bisavó foram empregadas domésticas. Essa criança poderia ser eu.

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