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Relatos de fome e solidão tomam ruas de Buenos Aires sob Macri: ‘Eu como o que me dão’

Deu ruim

Da AFP.

As ruas de Buenos Aires são uma janela da crise econômica argentina, a pior desde 2001. Nos hospitais, nas praças e nas estações de trem, multiplicam-se pessoas que, entre cobertores e caixas, fazem da via pública seu último abrigo.

Desde 2018, a Argentina enfrenta uma grave crise econômica, com alta inflação (37,7% entre janeiro e setembro), aumento do desemprego (10,6%) e pobreza (35,4%, sendo que 7,7% são indigentes). Em julho, havia 1.146 pessoas vivendo nas ruas portenhas, segundo estatísticas do governo da cidade.

Entretanto, organizações sociais contabilizaram 7.251 pessoas sem moradias, das quais 52% afirmaram estarem pela primeira vez em situação de viver nas ruas.

Soledad: “Eu como o que me dão”

Soledad Sánchez, 36, tem sete filhos com idades de 2 a 19 anos, além de ser avó de um bebê. Mora a poucos metros do célebre Teatro Colón, mas bem longe de outros luxos. Passa os dias sentada à porta de um supermercado, esperando que alguém lhe dê algo para comer, e, quando cai a noite, dorme em frente a um caixa eletrônico. “Eu como o que as pessoas me dão. Se não me dão, não como”, explica.

Soledad já havia vivido na rua com a mãe quando era criança. Mas, até fevereiro de 2018, conseguia, com a soma do valor que seu marido ganhava reciclando e uma ajuda do governo, pagar uma pensão para passar as noites. Quando perderam esse subsídio, seu marido cometeu suicídio. “Ele se matou pela situação que estávamos vivendo. Eles nos ameaçavam, dizendo que, se não saíssemos do hotel, levariam os meninos, e aí, às três da tarde de uma sexta, ele colocou fogo em si mesmo”, relembra.

Sánchez ficou viúva e sem teto. “Antes tinha onde viver, onde colocar meus filhos para dormir, dar banho, dar a eles o que comer, tudo. Agora não é vida”, diz, abraçada à filha de 6 anos que deixou a escola porque teve seu material escolar roubado, enquanto a outra, de 15, a observa da esquina.

O resto de seus filhos, diz orgulhosa, são escolarizados: “Mando eles à escola para que amanhã eles sejam alguém, não como eu”. Por enquanto, sair dessa situação é impossível. “Com sete filhos, o aluguel nos custa 12 mil pesos (cerca de R$ 650) e, além disso, não somos aceitos em qualquer lugar”, conta.

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José: “Na rua, sente-se muita tristeza”

José Rivero, 37, chegou a Buenos Aires da província de Salta, ao norte da Argentina, há quatro anos. Embora não tenha conseguido um emprego formal, sempre conseguia “inventar trabalho onde não tinha”.

O último foi em uma banca de objetos usados em uma feira. Há três meses, perdeu a vaga e, com ela, a possibilidade de continuar pagando o aluguel. Atualmente, passa seus dias nos arredores de um hospital público e as noites, em um abrigo do Estado. “Fiquei sem nada”, lamenta.

Para juntar um pouco de dinheiro, ajuda duas mulheres a vender sanduíches e café em suas bancas improvisadas na porta do hospital. “Vivo um dia após o outro, ganho 200 pesos (cerca de R$ 10) por dia, mas, como tudo está caro, o que eu faço com isso?”, pergunta.

A vida na rua fica cada vez mais difícil. “Dizem por toda parte que vão me chamar para trabalhar, mas nunca acontece”, comenta preocupado, pois há pouco tempo roubaram seu celular. “Na rua, sente-se muita tristeza”, explica. 

Mas ele não perde a esperança de conseguir trabalho: “Eu vim de Salta com a esperança de seguir em frente e, apesar de tudo, ainda não me rendi”.

Francisco: “Temos que aceitar a realidade”

Há mais de uma década nas ruas, Francisco Omar Niubó, de 60 anos, nem sonha em deixar a galeria do hospital onde vive. “Temos que aceitar essa dura realidade e não ambicionar o que sabemos que não vamos conseguir”, aconselha.

Há 15 anos, começou a sofrer pela falta de trabalho, até que o dinheiro que ganhava como pintor não foi mais suficiente para pagar o aluguel. Hoje, garante que a situação está mais difícil do que nunca.

Durante o dia, percorre a cidade com uma maleta carregada de pincéis e vidros de tinta, na esperança de que alguém o contrate para decorar um vitral ou fazer um cartaz. 

“Cada vez se trabalha menos e se compra menos com o que se ganha”, explica. “Antes, há 5 anos, nos diferentes bairros a que eu ia, quem não te dava um café oferecia um refrigerante, uma cervejinha, um sanduíche… Hoje essas pessoas não têm dinheiro nem para comer, quanto mais para me oferecer um bico. Pioramos muitíssimo”.

Niubó vive um dia de cada vez: “Antes, dizíamos ‘Se Deus quiser’, mas parece que Ele está de férias, pois estamos passando fome”, conclui.