Por Willy Delvalle, correspondente do DCM na Bélgica
O presidente Lula apresentou uma possível inflexão no discurso duro contra as “punições” propostas este ano pela carta adicional da União Europeia em caso de descumprimento de obrigações ambientais em meio ao acordo de livre-comércio com o Mercosul. Se antes Lula dizia que elas são inaceitáveis, o chefe de Estado falou na necessidade de certas concessões dos “dois lados”. Mas o eurocentrismo das discussões sobre a Ucrânia e do tom adotado pelas imprensas europeia e em certa medida brasileira prejudicou a agenda do Brasil e da América Latina.
Mercosul-União Europeia
Lula afirmou que os países deveriam cumprir “talvez 90%”, em vez de 100%, das exigências de cada lado.
A defesa mais incisiva, que deixou a entender o ponto de inflexibilidade do Brasil no acordo, é em relação aos direitos do Estado brasileiro de promover compras públicas, poder que a União Europeia quer reduzir em prol de maior concorrência.
Ele afirmou que ela representaria um risco principalmente para as pequenas e médias empresas.
Lula apontou os investimentos do Estado como elemento fundamental das políticas praticadas na Europa, citando o caso da Alemanha e da França, país cuja atitude criticou duramente.
Apesar do clima de amizade que transparece com Macron, com quem Lula tem longamente discutido em reuniões de trabalho nos fóruns internacionais, o líder brasileiro indicou como excessivo o protecionismo francês em relação principalmente aos seus produtos agrícolas e derivados, citando o vinho e o queijo, sugerindo que o país terá de abrir mão em parte.
Macron disse em coletiva de imprensa ontem que, por enquanto, não pode abrir mão de uma “réplica” no Mercosul de políticas ambientais e climáticas adotadas na União Europeia, o que o Brasil vê como pretexto para proteger os agricultores europeus, em particular os franceses.
Incisivo e incômodo
A atitude de Lula em relação à guerra na Ucrânia e sua postura como “líder” do Sul causou certo incômodo em jornalistas, ao mesmo tempo que o presidente impressionou na coletiva de imprensa realizada na capital europeia nesta quarta-feira.
Consultada pelo DCM, uma jornalista francesa se disse surpresa pelo “carisma”, “sinceridade” e a veemência de suas críticas “sem papas na língua”.
Foi destacada a crítica do presidente Lula ao seu homólogo chileno, que teria, por sua vez, criticado o tempo de discussão na Cúpula Celac-União Europeia – 2 dias – sobre se a declaração final deveria falar em guerra “na” Ucrânia ou “contra a Ucrânia” (formulação escolhida pelos 59 Estados-membros, menos a Nicarágua).
Lula disse que Boric é “jovem” e “ansioso”, apontando a inexperiência do mandatário em negociações internacionais desse porte na União Europeia. Significa que líderes sul-americanos entraram em atrito por um evento europeu, o que foi reforçado pela pergunta sobre a posição do presidente chileno.
O presidente do Brasil discorda da crítica de Boric e defendeu veementemente os resultados da Cúpula, pela dinâmica de aproximação e de expressão de interesse da União Europeia pela América Latina. Ele destacou que tal tempo é evidente quando se trata de considerar as posições de 60 Estados participantes.
A impressão de diversos jornalistas presentes nessa e em outras coletivas paralelas ao evento é de que, por um lado, a posição do Brasil sobre a Guerra contra a Ucrânia é compreensível.
Um jornalista italiano disse ao DCM que lhe parece ser “natural” que estando longe da Ucrânia o país priorize seus interesses econômicos e se implique menos diretamente na guerra.
Outra jornalista avaliou a posição de neutralidade brasileira como coerente, ainda que amplamente mal vista na Europa.
Uma jornalista francesa criticou a “intromissão” do presidente brasileiro nas suas críticas ao financiamento europeu do lado ucraniano na Guerra, comparável segundo ela ao que os países europeus fazem nas questões da América do Sul ou outros continentes do mundo.
Muitos deles acreditam que, há por outro lado uma disposição para melhor entender a posição dos países latino-americanos, o que aliás foi sublinhado por Lula em coletiva de imprensa.
Lula também provocou uma certa confusão em certos jornalistas ao ora falar em nome do Brasil, ora em nome da América do Sul e da América Latina.
Nesse ponto, onde Lula se equivocou foi falar “na” visão da América Latina, quando ficou notório que elas são diversas, a julgar pela posição da Nicarágua, que se recusou a assinar a declaração final da Cúpula Celac-UE por conta da menção à “guerra contra a Ucrânia”, e a posição do presidente chileno.

Ceticismo
Há ceticismo diante do otimismo de Lula na coletiva de imprensa, expresso pela confiança de que o acordo Mercosul-União Europeia será ratificado ainda este ano.
Na França, um dos maiores resistentes ao livre-comércio, jornalistas presentes na última coletiva de imprensa destacaram como esse tipo de acordo é mal visto no país, apontando a necessidade de valorização de “pequenos circuitos” de circulação de “produtos de boa qualidade”, em vez de grandes importações.
Uma reticência aos acordos de livre-comércio que vai por diferentes razões da esquerda à direita.
De um modo geral, a percepção na capital belga é de que a posição de Lula e a Cúpula Celac e União Europeia serviu para aprofundar um “entendimento”, ainda que sem novidades substanciais.
Eurocentrismo
O caráter eurocêntrico das perguntas jornalísticas nas coletivas de imprensa e o formato da Cúpula Celac-União Europeia traduzem a velha tradição de posicionar a Europa como centro das relações internacionais.
Só a imprensa tradicional foi escolhida para fazer perguntas, apesar da presença de veículos alternativos como o nosso. Isso se fez notar no teor das perguntas.
Na coletiva de encerramento da Cúpula, nesta terça-feira, uma jornalista espanhola da TVE classificou a Cúpula de um “fracasso” diplomático, diante do presidente argentino Alberto Fernandez, o presidente da Celac Ralph Gonsalves, a comissária europeia Ursula Von Der Leyen e o presidente do Conselho Europeu Charles Michel porque um país se recusou a assinar a declaração.
Fernandez lhe deu uma bela resposta, ou lição. “A Cúpula não é sobre a Ucrânia”. Como ignorar – ou esmagar – o consenso de 59 Estados-membros por causa da posição de um? Uma visão que beira o ridículo, ou pior, neocolonial, na visão de que o Sul é sempre um “estorvo” e empecilho para avanços.
Na coletiva de imprensa com Lula, além dos veículos europeus que se concentraram sobre a questão ucraniana, não foi diferente da parte de alguns veículos brasileiros tradicionais.
Foi lamentável que a questão da Venezuela não tenha vindo das (limitadas em número) perguntas dos jornalistas, mas que tenha vindo de modo espontâneo do presidente Lula, que reivindicou o levantamento de sanções que ele denunciou como “absurdas”, a exemplo da retenção das riquezas do Estado venezuelano em bancos estrangeiros. Ele criticou veementemente a política dos Estados Unidos para o país sul-americano.
Afirmou que a escolha de novas regras e datas para as eleições na Venezuela deverão levar à retirada de sanções.
Na manhã em que a ex-lobista americana Fiona Scott Morton, que trabalhou para os GAFAM, renunciou à nomeação para dirigir o setor de concorrência dentro da União Europeia, nenhuma pergunta foi feita sobre a visão do Brasil no assunto, Estado cujas empresas (públicas) foram espionadas pelos Estados Unidos. E num momento em que novas revelações apontam possível espionagem da CIA de ligações telefônicas entre presidentes latino-americanos, leia-se Lula, Dilma e Pepe Mujica e o então mandatário do Equador Rafael Correa.
Nenhum dos meios de comunicação escolhidos para perguntar (apenas os tradicionais, a Globo foi a primeira, depois do tradicional lugar da TV Brasil) a Lula se interessou em saber a posição do presidente brasileiro sobre as vulnerabilidades de ambas regiões diante da potência americana, que merecem no entanto uma reflexão, como disse Rafael Correa ao DCM nesta quarta-feira.
Na Cúpula Celac-UE, muito se comentou que a União Europeia não quis incluir um parágrafo sobre reparações coloniais na Declaração Final. De novo, nenhum dos apontados para perguntar quis saber do fundador da Celac o que ele tinha a dizer sobre.
Outra ausência que passou batida do olhar viciado dos olhos da Cúpula CELAC-UE e da coletiva com Lula foi a ausência dos povos indígenas no interior do evento, no meio dos debates.
Em meio ao anúncio de 45 bilhões de dólares para investir em grandes projetos de infraestrutura na América Latina e na cobiça da União Europeia por matéria-prima para produzir “tecnologia verde”, como falar em política ambiental e climática sem a presença daqueles que são frequentemente os mais afetados por esse tipo de política?
Havia algumas lideranças indígenas em Bruxelas, fora da Cúpula CELAC-UE, numa pequena praça sob o sol, na paralela Cúpula dos Povos, reunindo movimentos sociais da América Latina e seus simpatizantes europeus.
Uma militante boliviana disse ao DCM que a Europa não para de querer “invadir” os países da América Latina.
A exigência de Macron de “replicar” as políticas ambientais europeias talvez vá nessa sutil direção.
A ausência dos povos indígenas nas negociações de projetos que lhes impactam diretamente reflete potencialmente a visão de direito internacional consagrada pela europeia “Paz de Westphalia”, que lançou as bases do direito internacional que vigora até hoje. Estados representam teoricamente os povos que controlam, quando sabemos que frequentemente não é o caso.
Seria fundamental para produzir reais avanços diante da destruição do planeta pela expansão do capital.
Mas pode ser o sinal do grande desafio, as cobiças imperiais do mundo – dos Estados Unidos, à União Europeia, passando pela nova grande extrativista da América Latina, a China – de controlar o meio ambiente da América do Sul e Latina ou de garantir a dominação imperial no sistema internacional.
O certo nervosismo dos líderes europeus ao responder sobre a possível instrumentalização do meio ambiente como modo de proteger suas economias pode ser um sinal.