“Somos gente de mãos limpas, corruptos sempre foram eles”, diz ao DCM ex-presidente Rafael Correa sobre espionagem da CIA

Atualizado em 19 de julho de 2023 às 15:48

O ex-presidente equatoriano Rafael Correa reagiu em entrevista ao Diário do Centro do Mundo às revelações de uma operação de espionagem praticada pela CIA contra ele, sua família, e os então ex-presidentes Lula, Dilma e Pepe Mujica, do Uruguai.

Segundo uma reportagem do jornal El País desta terça-feira, a CIA contratou uma empresa espanhola de segurança terceirizada para monitorar os telefonemas do então chefe de Estado.

Na entrevista ao DCM, Correa aponta que as novas inspeções confirmaram uma operação de espionagem americana com a cumplicidade do agora ex-presidente Lenin Moreno, seu ex-vice.

“Queriam me chantagear e Lenin Moreno sabia de tudo”, aponta, indicando os resultados de novas inspeções sobre seus telefones e computador.

“Somos gente de mãos limpas, corruptos são eles”, acusa o líder esquerdista. Presidente no Equador nos anos 2000 e 2010, ele foi condenado pela justiça equatoriana a oito anos de prisão, acusado de corrupção. 

Exilado político na Bélgica, onde a entrevista ocorreu, ele denuncia uma perseguição política comparável à Lava Jato.

Alerta a Europa para suas vulnerabilidades diante da CIA. “Que uma empresa espanhola, que uma empresa europeia tenha tenha sido cooptada pela CIA deve levar a Europa à reflexão”.

Ele expressa ceticismo em relação à Cúpula Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos)-União Europeia, concluída nesta terça-feira na presença de diversos chefes de Estado de ambas regiões. “Na minha experiência, em 2015, foi formalidade e creio que esta também.”

Ele critica a mudança de posição europeia em relação à Venezuela, nítida no encontro. “O mundo merece uma explicação, pelo menos um pedido de desculpa por ter feito essa barbaridade, por seguir os Estados Unidos, reconhecer um palhaço como Guaidó.”

O ex-mandatário elogia, no entanto, a iniciativa francesa diante da situação na Venezuela. A atitude do presidente Macron foi muito boa em relação à Venezuela. A França é um país que tem um grande peso na Europa e no mundo. Há lugar para esperança.”

DCM: Qual a sua reação à espionagem que se tornou pública e cujas informações o senhor conhecia em parte?

Rafael Correa: Em primeiro lugar, obrigado por esta entrevista e um abraço para o nosso querido Brasil. 

Já sabíamos. Há um processo judicial há três anos na Espanha. O que acontece é que não haviam investigado bem o computador do principal envolvido, que é David Morales, diretor da Undercover Global, empresa de segurança.

Insistiu-se para que isso fosse feito. Surgiram novos dados que ratificam o que já sabíamos. E é basicamente que fomos espionados desde 2015 eu e minhas filhas, menores de idade.

Para que investigar filhas menores de idade? Para poder me chantagear e, claro, Julian Assange. E logo, Lenín Moreno (vice-presidente sob o governo Correa, entre 2007 e 2013), que nos traiu, soube disso. Moreno foi cooptado pela CIA.

Moreno soube da espionagem e também lhe informavam. Qual é a minha satisfação? Que, apesar de tudo isso, anos de espionagem da CIA, ter computadores totalmente espionados, computador que tinha-me sido dado pela empresa de segurança, meus telefones, espionarem minhas filhas, não encontraram e nem vão encontrar absolutamente nada porque somos gente limpa e os corruptos sempre foram eles.

DCM: O que você descreve é uma conspiração internacional por parte do presidente do Equador, que lhe traiu, e do presidente dos Estados Unidos?

Rafael Correa: Olha, as agências de inteligência muitas vezes são independentes de governos e muito difíceis de controlar. Eu não sei se o governo dos Estados Unidos sabia. Mas é claro: a empresa espanhola Undercover Global, contratada para garantir a segurança dos altos funcionários equatorianos quando viajavam à Europa, porque tem licenças para dirigir e dominam o idioma, e contratada para a segurança da nossa embaixada em Londres foi cooptada pela CIA.

Ela repassava para a CIA relatórios sobre Julian Assange e do presidente Correa. Lenín Moreno soube. Uma conspiração contra mim. Uma perseguição que dura seis anos. E nao é so isso. 

Contrataram uma empresa para investigar minhas transações financeiras, movimentos migratórios. Podem contratar o que quiserem. Nunca vão encontrar nada ilícito ou imoral. Somos pessoas boas, de mãos limpas e os corruptos sempre foram eles.

DCM: O senhor dizia que há novas informações descobertas agora. Quais são?

Rafael Correa: Havia milhares de arquivos que não haviam sido inspecionados. Insistiu-se para que eles os analisassem. Agora que completaram toda a revisão, não há sombra de dúvidas sobre a espionagem que houve já faz muitos anos a mim, minha família e obviamente Julian Assange (a quem Correa havia concedido asilo político na Embaixada de Londres).

DCM: Qual a novidade desses arquivos em relação ao que já se sabia?

Rafael Correa: Muitas coisas foram ratificadas; a espionagem contra minhas famílias menores de idade, contra mim, o computador, os celulares, as conversas de Assange com seu advogado, a sagrada relação advogado-cliente, e confirmou-se a informação que faltava contundente verificar: que informavam Lenín Moreno, presidente do Equador, de todos os meus movimentos para depois me perseguir.

DCM: Quais são os interesses por suas conversas com presidentes sul-americanos?

Rafael Correa: Queriam saber com quem eu me reunia, antecipar movimentos, ver como nos bloquear, ver se tenho influência em reuniões com Lula, com Dilma, com Mujica, destruir minha reputação, encontrar alguma informação para me prejudicar.

Claro que há múltiplos objetivos em espionar um ex-presidente nas suas relações com altos presidentes sul-americanos, parte da história da América do Sul.

DCM: Ha algo particular em relação ao Brasil, ja que foram dois ex-presidentes brasileiros espionados em conversas com você?

Rafael Correa: Espionaram a mim, quando me reuni com Lula e com Dilma no Brasil em 2018. Nao sei se conseguiram escutar essa conversa. Mas pelo menos descreveram onde, quando e o que fizemos.

DCM: E qual era o tema da conversa?

Rafael Correa: Primeiro, saber com quem eu me reunia. Tentar me bloquear. Depois, tentavam extrair algo de interesse, coisas confidenciais, ilegais, financiamento ilegal. Podem procurar o que quiserem, nunca vao encontrar.

DCM: A presidência do Equador estava representada na Cúpula Celac-União Europeia. Qual a sua avaliação?

Rafael Correa: Estava representada por Guillermo Lasso, que já não é mais presidente. Foi um fracasso total, teve de antecipar as eleições. Segundo a nossa constituição, ele deveria ficar até 2025. Mas pelo fracasso e a situação insustentável no país, ele teve de antecipar as eleições para este 20 de agosto. É um presidente que está fazendo turismo.

Não só veio à Cúpula, passou pela Espanha. Turismo porque veio com a família, além da delegação. Não gosto de falar disso, mas esse é o fato. Está se dando um último passeio antes de entregar a presidência. Fora que sua participação na Cúpula foi totalmente intranscendente. Seu discurso, como sempre, foi absolutamente irrelevante.

DCM: Em relação a essas articulações com Assange e o senhor, quais são os próximos passos, imagino que o senhor também esteja implicado em sua luta, já que ele corre o risco de extradição?

Não. Eu tenho asilo político na Bélgica. Sou reconhecido como um prisioneiro político porque os corruptos são eles. Isso, o mundo não sabe. Há uma censura impressionante no Equador, um discurso único contra nós.

Não conheço Julian Assange, não sou seu amigo, nunca o vi. Nunca falei por telefone (com ele). Uma vez falei por Zoom, quando ele trabalhava para o Russia Today, mas antes de ele entrar na nossa embaixada. Já na embaixada, nem sequer falei com ele por telefone. Não o conheço pessoalmente, mas sempre vou me rebelar contra qualquer injustiça.

A injustiça que está sendo cometida contra Julian Assange é gritante, é uma moral de dois pesos e duas medidas. Em essência, destruiu-se a vida de um jornalista por dizer a verdade. Por denunciar crimes de guerra e é perseguido pelos criminosos de guerra. Com o aplauso do mundo em um momento e (agora) a indiferença do mundo, com a indiferença da classe jornalística.

Com uma dupla moral brutal: se Julian Assange tivesse denunciado crimes de guerra da China ou da Rússia, já teria um monumento em Washington.

Não foi Assange que publicou as informações, foram New York Times, The Guardian (da Inglaterra), El País (da Espanha) e Der Spiegel (da Alemanha). Mas como são poderosos, foram contra o jornalista.

Claro que era informação secreta. Um tema de segurança nacional? Não há crimes de guerra. Isso é o que Assange denuncia, crimes de guerra, e por isso o enterram vivo. Quanta hipocrisia.

Não sou amigo de Assange mas seguirei me rebelando contra toda injustiça que está sendo cometida contra Julian Assange.

DCM: Essa espionagem coloca sob suspeita os interesses da Europa e a relação de confiança que se tentou construir na Cúpula entre a Celac e a União Europeia?

Rafael Correa: A Europa não tem nada a ver. Cabe refletir sobre uma empresa europeia, suponho que é o requisito para se registrar na Espanha e em qualquer lugar da Europa… Para uma empresa de segurança, tem de haver razoável garantia, seriedade e profissionalismo. Que uma empresa espanhola, que uma empresa europeia tenha sido cooptada pela CIA deve levar a Europa à reflexão.

DCM: Qual é o balanço da Cúpula Celac-União Europeia?

Rafael Correa: Eu sou ex-presidente, nem participo da Cumbre. 

DCM: O que observou?

Rafael Correa: Eu participei da anterior, em 2015. Eu era presidente da Celac. Há muita indiferença da Europa em relação à América Latina. Sao formalidades.

Na minha experiência, em 2015, foi formalidade e creio que esta também. Nos últimos anos, na agenda europeia para com a América Latina apenas existiu a Venezuela. Eis a contradição.

Há alguns dias, Guaido era o presidente da Venezuela. Agora, recebem a vice-presidenta de Nicolás Maduro Delcy Rodríguez como a representante legítima.

Há alguns dias, Juan Guaido era o presidente venezuelano, jogam-no no lixo e agora reconhecem o governo venezuelano e não há uma explicação, uma desculpa, nem nada. E o dano causado? As barbaridades que fizeram ao reconhecer um palhaço como Guaidó?

Eu o vejo como uma arrogância muito grande. Pelo menos, o mundo merece uma explicação, pelo menos um pedido de desculpa por ter feito essa barbaridade, por seguir os Estados Unidos, reconhecer um palhaço como Guaidó.

DCM: O senhor tem confiança no grupo criado por França, Brasil, Argentina e Colômbia para a situação na Venezuela?

Rafael Correa: A atitude do presidente Macron foi muito boa em relação à Venezuela. A França é um país que tem um grande peso na Europa e no mundo. Há lugar para esperança. Parece-me muito bom.

DCM: Para seu percurso pessoal e político, quais são as perspectivas?

Rafael Correa: A brutal perseguição contra mim vai ser derrubada mais cedo ou mais tarde. Mas o dano está feito. A dor humana. Não só contra mim. Eu já estava na Bélgica. Mas ha pessoas que foram presas, exiladas, que perderam suas casas, seus carros, para pagar advogados, em seis anos da mais brutal perseguição. Destruiu o país.

Eu vi uma destruição dramática em tempos de paz. Era o segundo país mais seguro da América Latina. Com cinco assassinatos por quase cem mil habitantes. Em 2022, acabamos com 24. Se a tendência continuar, acabaremos (este ano) com 35, entre os quinze países mais violentos do mundo.

Eu nunca vi tamanha destruição de um país em tempos de paz. Essa destruição teve um custo imenso e um tempo que não se pode recuperar. Atrasaram o nosso desenvolvimento em 20, 200 anos.

Isso vai ser rompido no nível nacional ou internacional. Depois que foram espionados pela CIA, minha condenação foi algo inventado. Foi muito similar ao que fizeram com Lula. Prenderam-no para eleger Bolsonaro.

Fui condenado em plena pandemia, quando todos os processos haviam sido suspensos, menos o meu. Fui condenado por “influxo crítico”.

O dano já está feito. Se isso tivesse acontecido com alguma liderança do mundo, um governo de direita nosso, estariam no Tribunal Penal de Haia. Como aconteceu com um governo progressista, de Lula da Silva, Cristina Fernandez, Evo Morales, Rafael Correa, nada acontece. Cedo ou tarde, a verdade prevalecerá, embora o tempo perdido nunca será recuperado.