Exclusivo – Mãe não consegue matricular filha autista: “Seu filho normal, eu aceito”, diz escola

Atualizado em 23 de fevereiro de 2021 às 22:28

Por Hellen Alves

Sarita Melo com Elisa, sua filha – Foto: Arquivo Pessoal

A busca por uma instituição de ensino já é naturalmente uma situação emocionalmente desgastante para pais de crianças e adolescentes atípicos. Em alguns casos, se torna verdadeira provação.

Sarita Melo, 28 anos, denuncia que uma escola localizada em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, se recusou a matricular sua filha, Elisa, de 2 anos, após informar que a criança é autista. 

A recusa ocorreu durante uma visita ao colégio na qual ela foi recebida pela coordenadora pedagógica que a levou para conhecer o local e explicou sobre o sistema de ensino da instituição.

Sarita conta que pediu informações sobre os preços e perguntou se Elisa poderia começar a frequentar as aulas naquela semana, a resposta da coordenadora teria sido positiva. Contudo, após informar que sua filha é autista, a coordenadora chamou a diretora e dona da escola que informou que não poderiam aceitar a menina.

“Vi que você tem dois filhos, um deles não é autista, o que não é autista a gente consegue receber aqui, já a menina autista não dá para receber aqui por conta da pandemia, a gente está com um número menor de alunos, a gente está numa situação em que eu não consigo ter esse cuidado com esse tipo de criança. Seu filho normal, eu aceito. Sua filha que é deficiente, eu não aceito”, disse a diretora, segundo Sarita.

Diante desta resposta, Sarita gravou um vídeo para tentar comprovar o ocorrido e no qual uma representante da escola afirma que a recusa não ocorreu porque Elisa é autista, mas porque ‘não há vagas’ para a faixa etária dela.

Contudo, Sarita fez um perfil falso no WhatsApp se fazendo passar por Amanda, mãe de um menino de 2 anos chamado Caio, e a instituição disse que a criança fictícia poderia começar a frequentar a escola no dia seguinte. 

“Eu achava que isso era uma coisa difícil de acontecer, mas aconteceu comigo e estou vendo acontecer com muitas mães. É algo mais real do que a gente imagina”, afirmou Sarita, que está processando a instituição civil e criminalmente, além de ter feito uma denúncia na Secretaria da Educação. “Para mim foi uma tortura psicológica muito grande, de eu ter medo de visitar outras escolas”, desabafou.

O artigo 8.ª da Lei nº 7.853/89 constitui crime punível com reclusão de dois a cinco anos e multa recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência. 

O advogado Leandro Mathias Novaes explica que nenhuma escola pública ou privada pode se recusar a fazer a matrícula, pois ‘toda criança tem direito de ser matriculada na escola regular independente de suas características individuais’. Ele esclarece que não há limite de alunos autistas ou com outras deficiências na mesma sala de aula.

Além disso, o autista está protegido pela Lei 12.764/12, que o considera pessoa com deficiência para todos os efeitos legais, e, portanto, também está amparado pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015).

Não é um caso isolado

Andréa Werner com seu filho Theo – Foto: Reprodução/ Instagram

Andréa Werner, mãe de Theo – uma criança com autismo grau 2, e fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, conta que teve a matrícula de seu filho recusada pela primeira vez quando ele tinha 2 anos de idade, mas que esta situação ocorreu diversas vezes. 

“Da última vez que foi recusada, eu procurei uma escola dessas que tem classe especial porque eu sabia que lá ele não seria recusado. Mas é exatamente isso que as escolas querem, elas querem segregar, elas querem que a gente tenha como única opção a segregação, isso não é justo”, aponta Andréa. 

A ativista acredita que as instituições de ensino se recusam a fazer a matrícula porque “a maioria dos pais não conhecem seus direitos e porque elas sabem que a maioria das pessoas não vai judicializar”. 

Até hoje em dia eu me arrependo de não ter judicializado alguma escola que recusou porque acredito que as escolas só vão mudar essa conduta quando o valor que elas gastarem com indenização e advogado para se defenderem ficar mais caro do que o valor de investimento para preparar professores e espaços para receber essas crianças”, reflete Andréa. 

O Instituto Lagarta Vira Pupa existe desde 2021 e foi criado para dar suporte emocional, jurídico e material a famílias de pessoas com deficiência, que são majoritariamente representadas pelas mães. 

“Mesmo que não for manter o seu filho lá, porque ninguém quer manter seu filho em uma escola que o rejeitou, pegue provas da recusa de matrícula e judicialize porque acho que isso é pedagógico”, diz a ativista. 

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Verônica e seu filho, Panda – Foto: Reprodução

Na última sexta-feira (12), a influenciadora digital Verônica Oliveira, criadora do “Faxina Boa”, compartilhou um vídeo em suas redes sociais para denunciar que uma escola da zona norte de São Paulo negou a matrícula de seu filho. Ela é mãe de “Panda”, 12 anos, que é autista e aluno do sétimo ano do ensino fundamental.

Em um vídeo publicado no Instagram, Verônica diz que os documentos já estavam preenchidos e as mensalidades do ano já haviam sido pagas ao colégio.

“Para variar, mais uma vez, eu fiz todo o processo de matrícula da escola do meu filho. A escola foi super solícita. Aí eu entreguei a listagem de documentos, coloquei na ficha de saúde o laudo dele dizendo que ele é autista. Fiz o pagamento de todas as mensalidades do ano, comprei material escolar. Cheguei para assinar o contrato e a escola devolveu tudo dizendo que, magicamente, enquanto eu não tinha vindo assinar o contrato, acabaram as vagas”, contou.

Na gravação, ela disse que uma outra escola do bairro também disse ‘que não tinha mais vaga’ após informar que seu filho é autista. “Mais uma vez vi meu filho ser negado numa escola apenas por ser quem ele é. Depois de entregar o laudo a vaga ‘desapareceu’. Mas a gente não desiste, a gente continua a lutar”, afirmou.

Verônica comemora o início do ano letivo de Theo – Foto: Reprodução

Em nova publicação nas redes sociais feita nesta segunda-feira (22), Verônica comemorou o início do ano letivo do filho. “Que seja um ano leve, ele vai fazer as aulas on-line mas decidiu ir um dia no presencial para conhecer professores e alunos, mas preferimos dar continuidade no on-line. Ele foi convidado pela escola após a repercussão do caso nas redes sociais! Estamos muito felizes e agradecidos por todos que mandaram mensagens de apoio, recomendação de escolas, dicas jurídicas etc”, disse a influenciadora.

Governo Bolsonaro X Inclusão

A recusa da matrícula de crianças e adolescentes autistas ou portadoras de outros transtornos de desenvolvimento reacende a discussão sobre o decreto 10.502 do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) que iria instituir a Política Nacional de Educação Especial. Caso tivesse sido aprovada, esta lei desobrigaria as escolas regulares a matricularem os estudantes com deficiência.

O Supremo Tribunal Federal formou maioria para derrubar o decreto por entender que a medida é inconstitucional ao incentivar a criação de escolas e classes especializadas em vez de priorizar a inclusão dos alunos.

Alunos autistas devem ser matriculados na escola regular que deve estar preparada para atendê-los. A decisão em que tipo de escola a criança irá estudar cabe aos pais e equipe médica. Com uma ressalva, já que existem alguns tipos de patologias que necessitem de uma maior atenção e poderia sim haver algumas salas específicas, mas cada caso é um caso”,  reflete o advogado Leandro Mathias Novaes. 

A inclusão é sempre a melhor escolha. Quem tem que decidir não é o presidente, quem tem que decidir é o médico da criança. O médico da minha filha disse que ela não tem necessidade de uma escola especial”, afirma Sarita Melo, mãe de Elisa. 

A ativista Andréa Werner lembrou da fala do presidente na qual ele disse que a educação inclusiva “nivela por baixo”. “Uma fala totalmente discriminatória e mostrou que desde o início estávamos certos que o decreto não era uma coisa boa, era pensando na discriminação mesmo”, denuncia. 

Ela avalia também que o decreto teria servido para validar as escolas que rejeitam crianças com deficiências, além de retirar dos gestores escolares a obrigação legal de modificarem os ambientes para promover a inclusão. 

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