Exclusivo: PM usou “delação” de esposa e amigos para prender suspeitos no Guarujá, e Defensoria vê coação

Atualizado em 1 de agosto de 2023 às 17:13
Em menos de 24h, a polícia ouviu 16 testemiunhas espontâneas que apontaram voluntariamente o autor do crime, segundo versão oficial

A Polícia Civil do Estado de São Paulo afirma que chegou à conclusão de que Erickson David da Silva foi o autor do disparo que matou o policial militar da ROTA Patrick Bastos Reis no último dia 27 com base em delações espontâneas e não premiadas de traficantes e parentes dos criminosos, por meio de depoimentos foram concedidas na delegacia menos de 24 horas após ocorrência.

Foram 16 testemunhas que passaram pela Delegacia de Polícia do Guarujá (SP) das 23h do dia 27 até as 17h do dia 28, além de sete presos acusados de relação com o crime, e sete indiciados.

Segundo a polícia, não houve tortura ou qualquer tipo de pressão para que as testemunhas e acusados falassem. Já a Defensoris Pública do Estado de São Paulo aponta que houve “coação ilegal” e já impetrou um habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo.

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No último dia 28, o delegado Sucupira Neto lavrou prisão em flagrante delito de seis pessoas e indiciou sete, já solicitando a conversão do flagrante em prisão preventiva (sem prazo determinado para acabar).

Além disso, enquanto mal se iniciavam as investigações, a autoridade policial já declarava com plena convicção: Erickson David da Silva, que então não havia ainda se entregado, era o autor do disparo que matou o soldado da Rota. De cara, foram indiciados Erickson e mais seis. Um deles foi indiciado apenas como “Kauã de Tal”, pois a polícia ainda não sabia seu nome completo.

É o que mostra o auto da Prisão em Flagrante e o Boletim de Ocorrência, reproduzidos abaixo:

Auto de presião mostra nome dos suspeitos presos no Guarujá no dia 28 de julho (crédito: Polícia Civil de SP)

Chama a atenção o fato de o boletim de ocorrência ter sido lavrado no próprio dia 28 e já trazer o depoimento de 16 testemunhas. Todas, em teoria, possuíam conhecimento sobre as circunstâncias do crime investigado e demais atividades ilícitas perpetradas pelos suspeitos.

Elas falaram com a polícia e passaram a denunciar voluntariamente – em teoria – os nomes de supostos traficantes moradoes da mesma favela que estariam envolvidos na morte do policial. Veja lista de indiciados, testemunhas e vítimas, constante no boletim do dia 28.

Crédito: Polícia Civil de SP
Crédito: Polícia Civil de SP
Crédito: Polícia Civil de SP

 

Conforme mostra o B.O., os indiciamentos, as prisões em flagrante e os pedidos de conversão em preventivas se deram por três crimês: tráfico de drogas, homicídio e tentativa de homicídio. Para sustentar a prisão daqueles que não são acusados de homicídio, mas sim de associação para o tráfico de drogas, a PM aprendeu com os suspeitos, entre outros objetos, cinco liquidificadores, duas peneiras, uma chave de fenda e uma balança de precisão.

A Polícia Militar não informa se todos esses objetos estavam de posse dos suspeitos no meio da rua, no auto do flagrante, ou se os acusados voluntariamente abriram suas casas para que os policias pudessem colher as provas de seus supostos delitos.

Uma coisa é fato: até aquele dia 28, não havia sido expedido qualquer mandado de busca e apreensão pela Justiça para que a polícia apreendesse materiais nas residências dos (recém-)investigados, de acordo com as informações constantes no processo público instaurado com o início das investigações.

Veja, abaixo, alguns dos objetos apreendidos pela PM no dia 28.

Crédito: Polícia Civil de SP

Conforme está descrito no B.O., no dia 27 de julho, às 22h30, “os Policiais Militares da ROTA estavam realizando incursão no morro da Vila Julia, quando em dado momento a guarnição composta por quatro policiais na viatura 91112 foi atingida por disparos de arma de fogo, sendo dois deles atingidos.”

Aqui, um parêntesis. O advogado criminalista, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal e membro da Comissão de Prerrogativas da OAB-SP, André Lozano Andrade, ouvido pelo DCM, identifica um ponto de inverossimilhança na narração policial:

“A versão oficial é que a polícia reagiu à ação de bandidos, aliás, como sempre verificamos em episódios envolvendo morte de policiais ou por policiais. No B.O., uma viatura da ROTA estava fazendo patrulhamento de rotina e simplesmente passou a ser atingida por disparos.

Não é verossímil: primeiro, não é o modo usual de atuação de traficantes, que preferem evitar confrontos que geram mais presença de policiais em suas áreas, muito menos o modus operandi da ROTA, cujos próprios membros se orgulham de dizer que primeiro atiram, e depois perguntam”.

De qualquer forma, de acordo com o delegado Saraiva, das 22h30 do dia 27 às 17h do dia 28, a Polícia Civil trabalhou e já elucidou o crime: prendeu suspeitos, indiciou todos e concluiu com a descoberta do autor do disparo fatal e seus comparsas. Em menos de 24 horas. Segundo consta no B.O., foi assim, com destaqes incluídos pela reportagem do DCM:

“A partir do registro da ocorrência JW1774/23 que deu ensejo ao IP 2218431-17.2023.040203, diligências foram encetadas, imediatamente para apurar a autoria dos fatos, principalmente no que tange ao Homicídio Qualificado e à Tentativa de Homicídio Qualificado contra os milicianos, dada as informações acerca dos autores serem pessoas envolvidas com a traficancia MAZAROPI E DEIVINHO (apelido de Erickson, o acusado do homicídio).

As diligências deram origem à construção do que efetivamente ocorreu na ocasião, de acordo com as testemunhas arroladas até que, por fim logramos esclarecer a autoria efetiva dos fatos, além da participação, bem como a ocorrência de uma perfeita Associação ao Tráfico, com tarefas executadas entre seus participantes, com vistas a venda de drogas, com preços pré-estabelecidos, tanto é que apreendida farta quantidade de insumos e apetrechos usados comumente na prática do crime de Tráfico de Drogas, além de porção de cocaína.”

A primeira testemunha que consta no B.O. seria um “viciado”, que, ao que parece, é pleno conhecedor de como funciona um ponto de venda de drogas, com os cargos que cada membro da quadrilha ocupa e sabendo dizer até quem trabalha armado e quem não.

Viciado, frequentor de um ponto de drogas que ele sabe muito bem como funciona, eis a testemunha. Ainda assim, voluntariamente – em teoria -, a testemunha contou tudo que a polícia queria saber. Parece não gostar de viver.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública, não houve qualquer tipo de tortura ou ameaça às testemunhas durante as oitivas na delegacia. Veja, abaixo, trecho do depoimento citado, na exata forma como foi grafado em documento oficial:

“A interrogado (sic) DAVID DE JESUS SANTOS ouvido sobre os fatos, afirmou que na noite dos acontecimentos DEIVINHO estava naquele local armado com arma de fogo, sendo ele o “contenção” da Biqueira da Seringueira e, além dele também disse que Alisson naquele dia, sendo ele o outro “contenção” não estava no local, por estar atrasado, sendo colocado outro em seu lugar.

Contou ainda que DEIVINHO era o único que estava “trepado” (armado com arma de fogo) com uma pistola e que quando os disparos de arma de fogo iniciaram-se ele, sua esposa e outros viciados estavam no interior do barraco, não sabendo quem dera os tiros que atingira os Policiais Militares da ROTA.”

Outra testemunha voluntária, em teoria, foi a esposa de “Mazaropi”, tendo sido este identificado por alguém que a polícia não cita quem é como um dos que dispararam contra os policiais. Conforme se lê no B.O., ela achou por bem e de livre e espontânea vontade delatar à polícia que seu companheiro é traficante de drogas e que o comparsa Deivinho disparou contra os policiais. Leia trecho de depoimento, abaixo:

Nas imediações da biqueira da Seringueira fica o bar da sogra de MAZAROPI, onde foi localizada sua companheira JESSICA PAULINO SENRA, sendo que na ocasião dos disparos MAZAROPI não só estava no local vendendo drogas, como também viu quando DEIVINHO deu o alerta da presença da ROTA e desferiu tiros.

JESSICA PAULINA SENRA ouvida sobre os fatos apontou que seu companheiro praticava a mercância de drogas na noite em que os milicianos foram alvejados e que entrara gritando em casa dizendo que “DEU MERDA” “QUE DEIVINHO DEU TIRO NOS CARAS”.

A Polícia, então, teria passado à caça de “Mazaropi” Este foi preso “em flagrante” na casa de um tio. A partir daí, esponteaneamente e sem qualquer forma de pressão ou tortura – em teoria -, resolveu confessar todos os seus crimes e ainda contou detalhes de como o ponto de tráfico funcionava, e ainda dedurou o seu suposto parceiro no crime, conhecido como Deivinho, tudo espontaneamente. Leia trecho do B.O. abaixo:

“Assim com tal relato, o fito passou à localização de MAZAROPI, que não foi localizado em seu local de trabalho e sim na casa do tio Wilson, tio de sua companheira e apresentado nesta Delegacia, não só confirmou que os disparos que atingiram os Policiais Militares da ROTA partiram da arma de fogo que DEIVINHO portava, como também descreveu como a ação para a venda das drogas e o abastecimento da biqueira da Seringueira.

O inquérito policial segue dessa maneira por mais de 190 páginas. Em poucos dias, já acumula 199 páginas, incluindo denúncias da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que afirma haver coação ilegal de acusados e testemunhas. O DCM teve acesso aos autos e publicará, ao longo dos próximos dias, mais reportagens a respeito.