Fazenda de “Terra e Paixão” tem desmatamento de reserva e despejo ilegal de agrotóxicos

Atualizado em 17 de janeiro de 2024 às 11:19
Terra e Paixão, da TV Globo. (Foto: Reprodução)

Por Tonsk Fialho e Carolina Bataier

A novela “Terra e Paixão”, de Walcyr Carrasco, é um sucesso de audiência. Em sua última semana, a trama da Globo ambientada no Mato Grosso do Sul alcançou uma média de 32 pontos, superando a antecessora “Travessia”, de Glória Perez, que registrou a pior audiência da história das novelas das nove, com 24 pontos. O resultado vem sendo comemorado pelos executivos da emissora antes mesmo da exibição do último capítulo — programado para esta sexta-feira (19) — e consolida a recente onda de novelas rurais, inaugurada com o remake de “Pantanal”, em 2022, e mantida com a estreia de “Renascer”, que sucede “Terra e Paixão” na faixa das nove.

O roteiro de Walcyr conta a história de Antônio La Selva, um poderoso (e inescrupuloso) latifundiário vivido por Tony Ramos. Junto à esposa Irene, encarnada por Glória Pires, o personagem comete uma série de crimes visando tomar a propriedade de sua rival, a professora Aline, representada por Bárbara Reis.

Por trás das câmeras, o cenário escolhido pela Rede Globo foi a Fazenda Annalu, localizada em Deodápolis (MS). Ali foram gravadas as numerosas cenas aéreas com as paisagens do agronegócio, entre maquinários agrícolas e lavouras colossais. Assim como o império fictício da família La Selva, a Fazenda Annalu coleciona uma série de violações ambientais, como dano a Área de Preservação Permanente (APP), instalação não autorizada de drenos e pulverização de agrotóxicos em local inadequado.

Entrada da Fazenda Annalu, em Deodápolis (MS), onde foi gravada a novela “Terra e Paixão”. (Foto: Reprodução/MPMS)

De Olho nos Ruralistas teve acesso ao Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) elaborado em março de 2022 pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul (MPMS), onde estão listadas as irregularidades do imóvel de 1.768 hectares. De acordo com o documento, os proprietários teriam um prazo de dois meses para executar as adequações. Quase dois anos depois, boa parte dos passivos ambientais se mantém, entre eles a manutenção dos canais de drenagem e a construção de uma área de lazer dentro da APP, às margens do Rio Dourados.

O imóvel está em nome de Aurélio Rolim Rocha, diretor do grupo Valor Commodities, uma das maiores empresas de plantio e comercialização de soja e milho de Mato Grosso do Sul, dona de 50 mil hectares no estado. Aos 30 anos, Lelinho, como é conhecido, foi o responsável pela negociação com a Rede Globo, que iniciou as gravações na Annalu em fevereiro de 2023. Na ocasião, o próprio fazendeiro recebeu o elenco de “Terra e Paixão”, com direito a foto, postada em sua conta no Instagram, abraçado a Tony Ramos. A imagem aparece no destaque desta reportagem, com a área dedicada ao confinamento de gado ao fundo.

Os passivos ambientais são apenas a ponta do iceberg no histórico da Fazenda Annalu e da família Rocha. Em uma série de reportagens, De Olho nos Ruralistas irá detalhar a dimensão do império fundiário controlado pelo grupo Valor, além de suas relações econômicas com gigantes do agronegócio brasileiro — incluindo uma divida milionária com a Seara, do grupo JBS. A próxima reportagem destaca a degradação do Rio Dourados e seus afluentes pelos donos da fazenda alugada pela Rede Globo: “Donos de fazenda de “Terra e Paixão” desviaram curso de rio e criaram peixes sem licenciamento“.

DESMATAMENTO EM RESERVA LEGAL JUSTIFICOU ABERTURA DE INQUÉRITO

As irregularidades ambientais da Fazenda Annalu foram constatadas pela primeira vez em junho de 2019, durante uma vistoria técnica realizada pelo Departamento Especial de Apoio às Atividades de Execução do Ministério Público do Mato Grosso do Sul (Daex/MPMS). A inspeção foi solicitada após o Núcleo de Geoprocessamento e Sensoriamento Remoto (Nucleo) do órgão identificar, por meio de imagens de satélite, um possível desmatamento ocorrido em 2015 — um ano antes do imóvel ser comprado pela família Rocha. Foram esses os dados que basearam a abertura do inquérito civil, ainda em 2018, e que levariam à assinatura do TAC em 2022.

Registro de vistoria realizada em 2019 mostra confinamento de gado na Fazenda Annalu. (Foto: Reprodução/MPMS)

Essa primeira análise, iniciada em 2016, identificou que a área passível de averbação de Reserva Legal (RL) correspondia a apenas 7,45% da área total da propriedade, abaixo do mínimo de 20% exigido pela Lei nº 12.651/2012, que instaurou o Código Florestal brasileiro. Dois anos depois, a família Rocha declarou o Cadastro Ambiental Rural (CAR) do imóvel com 335,33 hectares de RL, equivalente a 20,6% da área total da Fazenda Annalu. (O CAR funciona a partir de autodeclarações.)

Essa zona era originalmente composta por matas de brejo, um tipo de vegetação de grande importância ecossistêmica, uma vez que é responsável por evitar a erosão do Rio Dourados, que margeia a propriedade a oeste. Sem informar a data precisa, o laudo técnico do MPMS informa que trechos da Reserva Legal foram convertidos “no passado, para uso alternativo do solo”. Além do desmatamento, imagens de satélite datadas de 09 de setembro de 2018 e anexadas ao processo mostram a presença de gado bovino dentro da RL, o que é proibido pelo Código Florestal.

O relatório da vistoria, emitido pelo MPMS em agosto de 2019, exigia a suspensão imediata da atividade pecuária dentro da reserva e a recomposição da vegetação desmatada. Contudo, os documentos posteriores vinculados ao TAC não detalham se as determinações foram cumpridas. O termo foi assinado em 31 de março de 2022, dez meses antes do início das gravações de “Terra e Paixão”. Na última visita técnica realizada pelo Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul), em outubro de 2023, tampouco foram mencionadas ações específicas de recomposição de RL.

Além da pecuária convencional, em regime de pastagens, o grupo Valor Commodities utiliza a Fazenda Annalu para criação de gado em confinamento. Em junho de 2019, durante a primeira vistoria, foram contabilizadas 500 cabeças. Na inspeção de 2023, o gerente da fazenda apresentou aos fiscais do Imasul uma solicitação de licença protocolada naquele mesmo ano, pedindo a autorização para confinamento de 3 mil animais. O documento encontrava-se em fase de análise pelo órgão ambiental até a data de publicação do relatório técnico da vistoria. O mesmo funcionário afirmou ainda que os proprietários interromperam o confinamento bovino dois anos antes, em 2021.

Trecho do TAC evidencia criação irregular de gado em área de Reserva Legal. (Imagem: Reprodução/MPMS)

PROPRIETÁRIOS INSTALARAM PESQUEIRO EM ÁREA DE PROTEÇÃO PERMANENTE

Na documentação relativa ao Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre os proprietários da Fazenda Annalu e o  Ministério Público constam ainda outras infrações ambientais. De acordo com o laudo da vistoria técnica realizada em junho de 2019, a família Rocha declarou no Cadastro Ambiental Rural (CAR) apenas metade da faixa de proteção permanente exigida pelo Código Florestal.

Quiosque para pescaria construído dentro de Área de Preservação Permanente. (Foto: Reprodução/MPMS)

Principal limite geográfico do imóvel, o Rio Dourados é um curso de médio porte, tendo uma largura que varia entre 50 e 85 metros ao longo de sua extensão. A lei determina que, para cursos d’água dessa dimensão, a faixa de APP deve medir 100 metros de largura — contabilizados a partir da calha do leito regular do rio. Entretanto, o CAR da Fazenda Annalu delimitava apenas 50 metros.

Apesar da supressão de vegetação em zona de APP ser proibida, os técnicos do MPMS identificaram a conversão irregular de uso em alguns trechos do rio, apresentando “ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008”.

O relatório destaca ainda que, próximo ao limite norte da propriedade, foi construída uma área de lazer dedicada à pesca recreativa, ocupando uma área de 0,1202 hectares — equivalente a 1,2 mil metros quadrados — dentro da APP. As instalações incluem quiosque, churrasqueira, banheiros, bancos, mesas e estacionamento. A partir de imagens de satélite, o MPMS confirma que as benfeitorias foram realizadas em algum momento após agosto de 2009, período em que a Fazenda Annalu esteve sob gestão da comercializadora de grãos Granol. A família Rocha, proprietária entre 2003 e 2005, recomprou o imóvel em 2016, assumindo, além dos lucros da operação, seus passivos ambientais.

A retificação da faixa de APP para 100 metros e a recuperação da área desmatada para a construção do pesqueiro foram incluídas entre os compromissos de execução do TAC. No relatório da segunda vistoria, realizada em outubro de 2023, o MPMS informa que os proprietários da Annalu anexaram ao CAR um Plano de Recuperação de Área Degradada ou Alterada (Prada), visando a restauração da APP do Rio Dourados. O mesmo documento aponta que a fazenda aderiu ao Programa MS Mais Sustentável.

Além do lazer, a comercialização de pescado é um dos principais negócios do clã Rocha. Entre as irregularidades apuradas pelo Ministério Público, Lelinho e seu primo Nilton Fernando Rocha Filho admitiram responsabilidade pelo desvio do curso do Rio Dourados e pela instalação de 54 drenos para captação d’água sem autorização prévia. Os equipamentos, que ocupam uma parcela da APP, abastecem diretamente os tanques de piscicultura, onde a família cria tilápias. Contamos essa história em detalhes na próxima reportagem da série: “Donos de fazenda de “Terra e Paixão” desviaram curso de rio e criaram peixes sem licenciamento“.

Mapa identifica irregularidades em APP da Fazenda Annalu. (Imagem: Reprodução/MPMS)

EMBALAGENS DE AGROTÓXICOS ERAM ARMAZENADAS EM CONDIÇÕES IMPRÓPRIAS

As violações identificadas na fazenda de “Terra e Paixão” não se restringem à ocupação do solo. Os relatórios técnicos juntados ao TAC relatam que a pulverização de agrotóxicos desrespeitou a distância mínima em relação às áreas de preservação e habitações localizadas dentro do imóvel, além do descarte irregular dos produtos químicos.

Vistoria apurou estrutura inadequada para contenção de resíduos de agrotóxicos. (Foto: Reprodução/MPMS)

De acordo com o relatório da vistoria técnica de junho de 2019, anexo ao TAC, as zonas onde a pulverização terrestre é realizada estão localizadas em região “contígua às áreas propostas para comporem a Reserva Legal da propriedade e distante cerca de 20 metros de áreas úmidas”. Apesar de destacar que a visita foi realizada fora do período de pulverização, inviabilizando uma análise mais aprofundada dos impactos, o documento atesta a presença de casas da fazenda situadas a aproximadamente 15 metros de
distância das lavouras.

Os problemas se estendem ao armazenamento dos produtos. Fotos anexadas ao processo mostram um cercado construído de maneira precária, destinado a abrigar as embalagens vazias de agrotóxicos. “A cobertura do depósito apresentava-se em mau estado de conservação, a construção foi edificada principalmente em madeira e alambrado e não havia sistema de contenção de resíduos”, informa o laudo. Durante a vistoria, foram identificadas duas embalagens depositadas sobre o solo, fora do depósito.

De acordo com os fiscais, o acondicionamento verificado na Fazenda Annalu descumpre a Norma Técnica Brasileira ABNT NBR 9843-3 em sua totalidade. Embora as recomendações do relatório incluíssem a reforma ou construção de um novo depósito, o Processo Administrativo de Acompanhamento do TAC, assinado pelos sócios Aurélio Rolim Rocha e Nilton Fernando Rocha Filho, continua em andamento, assinalado como “atrasado” em diversas obrigações no sistema de consulta processual do MPMS. Entre elas, o manejo adequado das embalagens de pesticidas.

De Olho nos Ruralistas enviou questionamentos aos representantes do grupo Valor Commodities, ao Imasul e à Rede Globo. Não houve retorno até o fechamento da reportagem.

VÍDEO REVELA IMPÉRIO AGROPECUÁRIO DO CLÃ ROCHA

Apesar da longa lista de irregularidades identificadas na Fazenda Annalu, não foi pelos atos contra o ambiente que a família Rocha ficou conhecida na região de Dourados. Aurélio, que tem o mesmo nome do filho Lelinho, seu pai Nilton Rocha Filho e seu irmão Nilton Fernando Rocha foram presos em 2006 por sonegação fiscal de pelo menos R$ 79 milhões. Depois de doze anos de processo, somente um deles foi condenado, Aurélio.

Na época, o grupo familiar se chamava Campina Verde. Em fevereiro de 2020, no início da pandemia, a empresa passou a se chamar Valor Commodities e os acusados pelas fraudes deixaram de ser sócios para a entrada de Lelinho e de seu primo, Nilton Fernando Rocha Filho. O comando, no entanto, continuou nas mãos de Aurélio e Nilton Fernando.

Segundo o site do grupo, a companhia tem 50 mil hectares em Caracol, Deodápolis, Douradina, Nioaque, Porto Murtinho, Corumbá, todos municípios do Mato Grosso do Sul, uma empresa de aviação, seis postos de abastecimento de aeronaves e um setor de ativos imobiliários. A área de terras equivale a mais da metade do tamanho de Deodápolis, onde fica a Fazenda Annalu.

A dimensão desse império é detalhada em vídeo publicado no canal do De Olho nos Ruralistas no YouTube. Além das videorreportagens, o observatório produz documentários sobre questão agrária, como Elizabeth e SOS Maranhão, e mantém editorias fixas sobre História e sobre as ações da bancada ruralista no Congresso. Confira abaixo:

Originalmente publicado em De Olho nos Ruralistas

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