Matéria sobre delação da Ecovias mostra que Folha insiste no vexame do jornalismo lavajatista

Atualizado em 15 de março de 2022 às 17:17
Folha
O lavajatismo da Folha não morre

A manchete da Folha de S.Paulo de terça-feira (15) traz reportagem com depoimento de trechos de uma delação premiada de um empresário que foram vazados dos autos de uma investigação sobre fraude em licitações em rodovias do Estado de São Paulo. O título: “Delação da Ecovias atinge PSDB, PT e União Brasil e põe pedágio na eleição de SP”.

A reportagem é impressionantemente ruim. Pela quantidade e pela qualidade dos erros – intencionais ou não – que traz, de informação e de técnicas de produção jornalística. Mas principalmente porque mostra que o jornal não aprendeu com os próprios erros cometidos na cobertura da operação Lava Jato, ao longo de anos. Ou acha que não tem nada a aprender, e é difícil dizer o que seria pior. 

Um erro, em específico, impressiona mais. Mas para compreendê-lo é preciso passar pelos demais:

1 – O vazamento customizado para atender os interesses de quem vaza

A reportagem é sobre uma investigação em curso no Ministério Público do Estado de São Paulo, sobre contratos da concessionária Ecovias com o governo estadual do início da década de 1990 para cá, que incluem a administração das operações e das receitas do pedágio das rodovias Anchieta e Imigrantes, que ligam a capital à Baixada Santista.

Segundo o jornal informa no primeiro parágrafo,  “uma delação premiada feita por representante da concessionária Ecovias atinge políticos de grandes partidos, como PSDB, PT e União Brasil, com implicações para um tema sensível nas eleições deste ano ao Governo de São Paulo.”

No quarto parágrafo, informa que o delator “levou ao Ministério Público Estadual relatos de pagamento de propina e caixa dois para políticos paulistas em 1999 e 2014, conforme trecho ao qual a Folha teve acesso.”

O jornal não deixa claro se os documentos são parte de procedimento investigatório sigiloso, mas tudo leva a crer que sim, por se tratar de uma investigação em curso. Assim, quem quer que tenha vazado o material à Folha o fez criminosamente (o jornal não cometeu crime ao publicar e não tem a obrigação legal de informar a sua fonte), pois é crime no Brasil vazar documentos que estão sob o manto do sigilo legal.

Dessa forma, quem quer que tenha vazado o material ao jornal tem interesse em que ele seja divulgado, interesse grande ao ponto do cometimento de um crime.

No oitavo parágrafo, o jornal informa que “o nome do executivo da concessionária que listou as acusações é mantido em sigilo.”  

Isso só pode significar uma de duas coisas: 

  • Foi vazado ao jornal somente um trecho do documento, em que o delator cita nomes de políticos de diferentes partidos, quanto teria pago de propina para cada um, e uma acusação dele, delator, de que teria sido achacado por esses políticos, acusação esta narrada pelo MP-SP, que dá crédito ao que diz o delator. 

Não foi vazado o nome do delator nem o motivo para a empresa Ecovias ter aceito pagar R$ 650 milhões ao Estado a título de devolução de valores recebidos ilicitamente, em um acordo com a promotoria.

Em outras palavras, só foi vazado o que interessa à empresa e ao delator.

  • Tudo foi vazado ao jornal, mas ele não pode divulgar o nome do delator porque ele é a fonte, e só forneceu o documento sob a proteção do sigilo garantida pelo jornal.

Em qualquer uma das hipóteses, a história que o jornal conta é obrigatoriamente só uma parte da história, aquela que interessa ao delator contar, ver publicada. E o jornal se presta a este serviço acriticamente. Não apenas conta a história que queriam que contasse, como também confere novas cores ao que se conta, essas a seu próprio gosto. 

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2 – A invenção da narrativa eleitoral e o ocultamento da responsabilidade de cada partido

Na reportagem, o jornal afirma que a delação trará consequências para as eleições estaduais de 2022 em São Paulo. A afirmação é do jornal. Nenhuma fonte ouvida pelo jornal afirma isso. É o jornal quem lança a tese. 

A reportagem se debruça em trechos da delação que versam sobre o pagamento de propinas a sete ou oito deputados estaduais paulistas. Elas são da ordem de R$ 400 mill, totalizando, assim, algo em torno de de R$ 3,5 milhões.

Os deputados são de diferentes partidos, incluindo PSDB, PT e União Brasil, citados no título da reportagem. Assim, o título da reportagem deve trazer indistintamente todas essas siglas porque representantes parlamentares de todas elas teriam recebido propinas do pedágio da Imigrantes, o mais caro do Estado.

No interior da reportagem, porém – espaçadamente, fora de um fluxo narrativo contínuo -, se lê que as investigações são de um processo maior, de fraude em licitação e formação de cartel em contratos com o governo do Estado ao longo de décadas.

Lê-se, também, que em 2020, a Ecovias assinou um contrato com o MP-SP em que se comprometia a devolver R$ 650 milhões aos cofres estaduais, que teria embolsado ilicitamente ao longo de todos esses anos e contratos, que obteve por meio de licitações organizadas, controladas, fiscalizadas e homologadas pelo governo estadual. 

Ou seja, o que são essas propinas pagas supostamente a esses deputados perto do desvio que se investiga? Desvio este ocorrido em contratos do governo estadual ao longo de décadas. Todas essas décadas sob o controle do PSDB. Mas o jornal preferiu colocar todos os partidos no título.

Lê-se, ainda, que o delator disse que pagou essas propinas porque esses deputados estavam ameaçando emitir relatório final desfavorável à empresa em uma CPI da Assembleia Legislativa sobre contratos do Estado de concessões rodoviárias. 

O delator disse que não tinha feito nada de errado, mas preferiu pagar ao invés de chamar a polícia ou a imprensa e denunciar os deputados. Então, tá.

Dallagnol, Moro e Alvaro Dias
Dallagnol, Moro e Álvaro Dias

3 – A delação usada como prova

Finalmente, o pior erro, repetido tal e qual cometido ao longo da Operação Lava Jato. O jornal ainda não entendeu que delação premiada tem o valor de um jornal de ontem quando não é acompanhada de prova. 

Assim está na lei, que foi completamente ignorada por Deltan Dallagnol, Sergio Moro, Folha e imprensa em geral. E a Folha mantém o mesmo procedimento.

A palavra de um delator é obrigatoriamente a palavra de um criminoso confesso. Ele assina para obter vantagens no processo penal que responderá pelos crimes que confessa no exato mesmo documento em que sela a delação.

Ou seja, trata-se de um criminoso dizendo algo para se livrar em parte do peso da Justiça. Se o que ele fala não pode ser provado, qual a sua serventia e qual a sua credibilidade? Obviamente, nenhuma.

Delação não é testemunho. Delação não é prova testemunhal. Delação não é prova. Ela precisa trazer provas ou permitir que se chegue a provas. Sem isso, não tem valor. Assim está na lei.

O jornal publicar todas essas coisas que o delator disse sem trazer a informação sobre as provas que acompanham essas declarações mostra que ele ainda não entendeu este conceito. 

É a mesma coisa que publicar o que diz qualquer bandido. Qual a função jornalística de publicar declarações de um bandido que mancham reputações e não trazem um resquício de prova sobre o que afirmam?  

Não se sabe se o jornal comete esses erros assim repetidamente por incompetência ou dolo. O que, sim, se nota é que o leitor e a Justiça são os grandes prejudicados por eles.

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