Governo versus cidadãos, no país onde ninguém confia em ninguém. Por Ricardo Kotscho

Atualizado em 2 de fevereiro de 2020 às 10:26
Fila do INSS. Foto: Agência Brasil

Publicado originalmente no blog Balaio do Kotscho

POR RICARDO KOTSCHO

Esta semana, cumpri minha obrigação de ir à agência bancária uma vez por ano para provar que ainda estou vivo, embora haja controvérsias.

Mal das pernas, arrastei-me até a fila do caixa _ do único caixa aberto em que havia uma funcionária (bancos estão cada vez mais trabalhando com menos bancários).

Agora podemos resolver tudo pelo celular, dizem as propagandas, menos fazer a “prova de vida” que precisa ser presencial.

Basta mostrar a carteira de identidade e o cartão do banco, digitar tua senha, dar um sorriso para a moça, e pronto: você recebe um comprovante de que está vivo, apto a receber a tua aposentadoria.

Caso contrário, o cidadão é bloqueado pelo INSS e depois tem que percorrer uma via-crucis para ressuscitar no “sistema”.

Com mais de 2 milhões de contribuintes na fila para ser atendidos, sem prazo para isso acontecer, periga até de o infeliz morrer antes.

Não sei se essa exigência da “prova de vida” existe em algum outro país civilizado, mas aqui, segundo os pais da pátria, tornou-se uma necessidade para “combater as fraudes” no sistema que provocam os rombos bilionários.

Alega-se que muitos mortos continuavam recebendo aposentadorias e pensões do INSS.

Eu mesmo sou uma prova disso.

Explico: anos atrás, quando eu trabalhava no governo federal, o INSS continuou depositando a aposentadoria da minha mãe, meses após a sua morte,

De nada adiantava mostrar o atestado de óbito. Fui até falar com o ministro da Previdência, meu amigo, levei todos os documentos, mas não houve jeito.

Passou o tempo, o ministro caiu e outro assumiu. Insisti de novo, pedindo a ajuda de um assessor de imprensa do novo ministro.

“O ministro mandou te dizer que é mais fácil tua mãe ressuscitar do que o INSS resolver esse problema. Tem milhões de casos assim”, retornou-me o assessor.

Seis meses depois, finalmente pararam de depositar a aposentadoria e recebi uma pilha de formulários para devolver ao Tesouro Nacional o que foi pago indevidamente após a morte dela.

Vai ver que essa “prova de vida” é por culpa da minha mãe…

É a maior prova de que nesse país ninguém mais confia em ninguém. Nem os cidadãos acreditam no governo, nem o governo acredita nos cidadãos, até prova em contrário.

Para receber teus direitos, você tem que provar que está vivo e é inocente, vai à igreja e não deve nada a ninguém.

Como é possível confiar num governo que mente compulsivamente todos os dias, ri da nossa cara e garante que, com a reforma da Previdência, a aposentadoria agora é “igual para todos”.

De todas as mentiras que Paulo Guedes & Cia. contaram até agora, a maior é certamente essa reforma, que garantiu os privilégios das grandes corporações do funcionalismo público e cortou na carne os proventos do andar de baixo, que já recebem um miséria.

Para provar que essa reforma era boa, gastaram milhões em anúncios testemunhais de Ratinho, Datena e outros patriotas do gênero que apoiam o governo.

Com a maior cara de pau, esta semana o capitão-presidente alegou que o governo não tem dinheiro para trazer de volta da China os brasileiros ameaçados pela epidemia do coronavirus.

Na mesma semana, ficamos sabendo que o governo torrou R$ 48 milhões na auditoria da caixa preta do BNDES, que estava vazia, enquanto jatinhos da FAB cruzam o mundo levando a bordo alegremente ministros e aspones variados.

Parlamentares e magistrados não reagem porque o deles está sempre garantido, e os companheiros militares até receberam régios aumentos.

Cumpri minha obrigação cidadã dentro do prazo, mas saí do banco mais convencido de que sou mesmo um perfeito idiota.

Para receber uns caraminguás do INSS, depois de 55 anos de trabalho, passei um tempão na fila, que não tem prioridades, porque só velho aposentado precisa provar que está vivo.

Quando chegar a vez dos mais jovens se aposentarem, com essa reforma da Previdência a todo vapor, nem isso sobrará.

São uns pândegos…

Vida que segue.