A greve que mudou o jornalismo brasileiro

Atualizado em 26 de maio de 2013 às 18:06

Inspirados pelos metalúrgicos sob Lula, os jornalistas decidiram cruzar os braços em 1979 — com resultados brutalmente miseráveis.

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Piquete em frente da Folha

RECEBI HÁ ALGUM TEMPO  EM LONDRES uma mensagem de meu irmão Kiko. “Já leu?” Já. Era uma reportagem sobre os 30 anos da greve dos jornalistas de São Paulo, um episódio doloridamente histórico para nós, profissionais. Tinha saído no boletim Jornalistas&Cia, de Eduardo Ribeiro. “Ultimamente têm passado muitos anos”, escreveu Rubem Braga. Pois é. Eu estava no melhor lugar durante as discussões que afinal levaram à greve: ao lado de papai. Eu tinha 23 anos na época e estava começando a carreira no grupo Folha, onde papai trabalhava. Fui da última geração que iniciou a carreira na revisão, uma atividade em que você acaba treinando os olhos para perceber palavras erradas. “Com o tempo, você começa a ver as palavras como desenhos”, me disse uma vez papai, ele também oriundo da revisão. “Percebe se o desenho tem algum problema.”

Em 1979, eu já saíra da revisão, e dera um passo na carreira. Era redator da Folha da Tarde, o segundo jornal do grupo Folha, do empresário Octavio Frias de Oliveira. Frias deixava os jornalistas da Folha de S. Paulo darem ao jornal um tom mais liberal e progressista, e paralelamente mantinha na Folha da Tarde uma direção politicamente bem mais conservadora. Havia, na redação, militares e policiais, e algumas notícias do Dops, a polícia política do governo de São Paulo, saíam primeiro na Folha da Tarde. Eu me sentava ao lado de um coronel aposentado simpático e prestativo, corpo esbelto na meia idade e disposição de menino. Todos o chamávamos de Coronel.

Meu lugar era o melhor, na época da greve, mas não o mais fácil. Ver o seu pai ser insultado não é simples. Os jornalistas de São Paulo, em 1979, estavam loucos para entrar em greve, como todas as categorias do país. Depois de uma demorada estiagem de greves durante o regime militar, os metalúrgicos de São Bernardo tinham cruzado os braços, sob a liderança de um certo Luiz Ignácio da Silva, apelidado Lula, um operário cuja barba desgrenhada remetia a ícones da esquerda como Marx e Fidel. Intelectuais que citavam passagens de O Capital de Marx e ensinavam até a ordem mais lógica de leitura de seus capítulos encadeados caoticamente tentavam doutrinar e controlar o jovem sindicalista, carismático e dono de uma inteligência natural e não burilada, e um contumaz agressor da gramática.

Mas o tempo mostraria o resultado inverso, o domínio do pragmático líder operário com um dedo a a menos e língua presa sobre os intelectuais que sonharam controlá-lo, todos sob o guarda-chuva de um partido recém-fundado que prometia renovar a política nacional, o Partido dos Trabalhadores, mais tarde apenas PT.

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Papai na máquina de escrever que usava como se tocasse piano

OS METALÚRGICOS EM GREVE, uma imagem romântica e glamourizada, assanharam trabalhadores de toda espécie, incluídos os jornalistas. No final dos anos 70, palavra nenhuma enfeitiçava tanto os trabalhadores no Brasil quanto greve. Fazer greve era uma atitude, uma comenda. No Sindicato dos Jornalistas, na Líbero Badaró. centro de São Paulo, logo que apareceram as manifestações dos metalúrgicos se começou a falar em greve, como se fosse um sonho épico.

O sindicato era dirigido por pessoas ligadas ao grupo fundador do PT. Não lembro a primeira vez que papai, um intelectual católico, falou comigo sobre a possibilidade de greve. Papai não era militante político e nem frequentava o sindicato. Dividia-se entre o jornal e a família. Todo o seu tempo livre era dedicado a nós, que o esperávamos ansiosamente na casa simples do Previdência, um bairro de jornalistas. Mas lembro bem a primeira assembléia em que se discutiu em 1979 a greve na Igreja da Consolação, onde pouco mais de três anos depois seria rezada a missa de sétimo dia de papai.

Não creio que tenha havido outra ocasião em que a Igreja da Consolação estivesse tão repleta e tão nervosa quanto naquela noite, há 30 anos, em que se ia discutir a greve. Os ânimos eram francamente a favor da greve. Algumas razões eram apresentadas, mas a maior delas, não dita, era a emulação com os metalúrgicos, muito mais forte que qualquer reivindicação financeira.

Fiquei apreensivo quando a palavra foi encaminhada a papai, que a pedira. Com sua voz clara e pausada de professor, alternando o olhar míope entre a platéia e os próprios pés, cigarro na mão esquerda manchada de nicotina, papai falou o que ninguém queria ouvir. Ainda hoje me impressiona a coragem serena, lúcida e imperturbável com que ele apanhou o microfone num ambiente que lhe era absurdamente desfavorável. Os jornalistas não estavam preparados para a greve, disse papai. Foi vaiado e xingado pelos mais exaltados, “a voz dos patrões”, mas seu poder de convencimento era tão forte que segurou a corrente. Na hora da votação, houve ou pareceu haver, numa contagem inevitavelmente precária, empate, o que significa que a greve não seria declarada. Ainda.

Poucos dias depois, uma outra assembléia aconteceria, desta vez no Tuca, o teatro da Universidade Católica de São Paulo. Papai estava sentado na ala esquerda dos assentos a partir do palco, sempre com um cigarro nas mãos, olhos fixos nos oradores, num regime de concentração total. Eu estava ali a seu lado, bem mais aflito que ele. Mais uma vez, os ânimos eram pela greve. Papai, outra vez, falou, sob vaias e insultos. Eu me perturbei, ele não. Se pudesse teria brigado, fisicamente, com alguns dos que xingavam papai. “Os jornais vão noticiar a greve”, papai falou, calmamente. Mas agora ele não conseguiu o impossível e sob entusiasmo generalizado e barulhento, como se aquela turma de jornalistas sisudos fossem adolescentes prestes a ir ao primeiro baile,  a greve foi declarada.

Papai era editor de opinião da Folha na ocasião. Cuidava das páginas 2 e 3. Entrou em greve, sem relutar, por entender que devia lealdade antes que tudo aos colegas. Eram tempos em que o barulho das máquinas de escrever dava um ar eletrizantes às redações, infestadas de laudas nas quais os repórteres redigiam textos que seriam modificados a caneta por editores e telexes que traziam o noticiário estrangeiro e manchavam as mãos. Tudo sob a contínua fumaça dos cigarros tragados freneticamente. Não chegava a ser incomum a presença de garrafas nas gavetas que, discretamente, evitavam a caminhada até o bar. Nosso Google eram recortes de jornais e revistas antigos, a base dos departamentos de pesquisa.

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Papai, na redação da Folha, em meados dos anos 1970

DEZOITO ANOS ANTES, numa greve anterior dos jornalistas, em 1961, meu pai hesitara. Eu era menino, tinha cinco anos. Papai me contaria, depois, como tinha sido difícil a decisão de aderir à greve de 61. Ele era membro do Comitê Editorial da Folha e, aos 34 anos, o favorito do dono do jornal, Nabantino Ramos. Minha mãe não queria que papai fizesse greve. Nabantino tratava papai como um filho. Emprestara dinheiro para meus pais comprarem móveis quando se casaram.

O capitalismo no Brasil, na época, era mais humano. Os empregados tinham estabilidade, não havia fundo de garantia, e as companhias funcionavam mais como família do que como empresa. Havia, entre papai e Nabantino, uma relação que ia muito além da profissional. Com Frias, que papai respeitava, o vínculo era bem menos emocional; patrão, um bom patrão, aliás, e empregado, um bom empregado, aliás.

Daí a diferença do grau de dificuldade em aderir à greve. De resto, Frias era um homem de negócios; Nabantino, um intelectual idealista. Foi provavelmente a decisão mais dramática da carreira de 33 anos de meu pai. Para Nabantino, a greve  de 1961 significou o fim das ilusões. Amargurado, logo depois vendeu o jornal a Frias, que o comprou com o incentivo de um amigo que lhe disse que dinheiro ele já tinha, oriundo de uma granja e da rodoviária de São Paulo; a Folha lhe daria prestígio.

Na saída, Nabantino deu uma pequena fortuna a cada integrante do Comitê Editorial, exceto papai, o único deles que fez greve. Nabantino rompeu com papai. Anos mais tarde, se reconciliariam, para grande alegria de meu pai. O então inovador dicionário de jornalismo que Nabantino escreveu nos anos 60, depois de ter vendido a Folha, foi dedicado a um pequeno grupo de jornalistas, entre os quais papai.

Em 1979, não existia uma questão emocional tão aguda para meu pai. Ele já era um homem maduro, aos 52 anos, e fizera muito atrás a opção pelos colegas e pelos seus princípios em prejuízo das promoções. “Seu pai teria sido presidente da Folha se fosse diferente”, ouvi, pouco depois da greve, de um ex-diretor da Veja que trabalhara sob papai nos anos 60.

Muitas vezes me perguntei, nestes anos todos, o que eu faria no lugar de meu pai em situações parecidas, e nunca me convenci de que teria sua grandeza e coragem para colocar em risco o conforto de bons cargos. Meu pai era um romântico, um espírito quixotesco, um editorialista capaz de recusar escrever um editorial no qual tivesse que dizer que não havia presos políticos, apenas presos comuns. Era, vejo hoje, um homem pouco talhado para a vida numa empresa moderna, ao colocar seus princípios acima de tudo, incluído o dono, e se foi longe isso se deveu a um talento excepcional, em que a prosa machadiana se mesclou a uma sensibilidade formidável de distinguir a manchete da segunda ou terceira notícia mais importante do dia.

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Papai com minha cunhada Laura, no Sindicato dos Jornalistas

A greve de 79 cumpriu o percurso miserável que papai, no Tuca, previra. Os jornais a noticiaram todos os dias. Numa das assembléias em que a derrota já era clara mas ainda teimosamente não fora aceita pelos grevistas, um organizador chegou a falar numa arma secreta que pararia as redações. Jamais se conheceu tal arma, e os jornalistas retornaram a seus postos como as tropas napoleônicas no inverno russo, tentando salvar os destroços. Estavam desarmados, à mercê. Colheram o fracasso onde os metalúrgicos do ABC conquistaram a glória que, 23 anos depois, ajudaria a colocar Lula na presidência.

As demissões de jornalistas, depois da greve, não encontraram resistência nas redações enfraquecidas e amedrontadas. As redações dos anos 80 eram muito menores que as dos anos 70, e ninguém voltou a falar em greve desde a capitulação até hoje. Um dos raros vestígios de bom humor foi o apelido dado ao comandante do sindicato, Jim Jones, o americano que conseguiu convencer um bocado de adeptos a cometer suicídio em massa. Como consequência da greve, as redações se despolitizaram e se esvaziaram, e foi neste ambiente que iniciei minha carreira como repórter de economia na Veja com ternos baratos de manga curta comprados na Ducal, perto de casa.

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Papai recebe de seu antecessor Davi de Morais o cargo de presidente do Sindicato dos Jornalistas, em 1980

Papai, contra sua vontade, foi alçado à posição de profeta, ele que sempre cultivara a modéstia como cristão militante que era. Sem jamais ter frequentado o sindicato, embora fosse sócio desde que se tornara jornalista, foi convencido a concorrer à presidência. Sua chapa era apoiada pelo Partido Comunista, o Partidão, ao qual papai jamais pertencera, mas no qual tinha bons amigos.

A outra chapa era ligada ao PT, e tinha no comando Rui Falcão, um adversário leal, amável e cheio de tiques que depois se tornaria político profissional. Muitas vezes me perguntei como convenceram papai a aceitar a disputa. Ele era distante do sindicato e em todo o tempo disponível que tinha gostava de estar ao lado dos cinco filhos. Não tive tempo para falar disso com papai, indagar por que topou algo tão contra sua natureza; as coisas se precipitaram e saíram do controle.

Hoje penso que papai foi candidato, mesmo sem ter nenhuma vontade, por julgar romanticamente que poderia ajudar seus amigos e colegas jornalistas.

Morreu no cargo, devastado rapidamente por um câncer no pâncreas.

Na edição do Jornalistas&Cia que reconstituiu a saga de 1979, papai foi lembrado com admiração e respeito muitas vezes, sobretudo pelos que o atacaram na época. Muitos artigos foram escritos sobre ele quando morreu, em setembro de 1982. Ruy Lopes, um dos grandes jornalistas de sua geração, um homem que gostava de comer arroz com feijão em casa, escreveu que papai foi humilhado na assembléia do Tuca na frente de seus filhos.

Ruy, numa certa época nos anos 1970, foi usado por Frias para encostar o diretor Claudio Abramo. Frias o trouxe de Brasília para São Paulo, e deu a ele o título de editor chefe, com o qual na prática ele comandava a redação, em vez de Claudio. Ruy não suportou São Paulo e retornou a Brasília, onde chefiou a sucursal da Folha e foi o melhor articulista brasiliense que o jornal jamais teve, no mesmo espaço que ainda hoje existe.

Fiquei irado com o artigo de Ruy sobre papai, e escrevi numa lauda uma carta a ele. Jamais a enviei, não sei por quê. Décadas depois, numa visita a minha mãe, encontrei a carta que não mandei. Reli e achei melhor mesmo que ela não tenha chegado às mãos de Ruy.

Nunca mais vi Ruy. Se o visse, diria apenas que papai estava absolutamente tranquilo na assembléia. Tinha couraça, como o jacobino que dormiu enquanto a Convenção decidia se o mandava ou não para a guilhotina. Eu não. Se pudesse, brigava fisicamente com os exaltados que atacavam papai. Fora a bravura extraordinária de meu pai, essa a minha memória mais forte da greve, passados tantos anos — os socos que não dei e nem recebi naquela noite remota no Tuca.

Leia mais: O que aprendi com meu pai

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