Hemingway foi destruído, mas não derrotado

O brilho eterno de Ernest Hemingway.

Jovem

HEMINGWAY é uma referência eterna.

Queria ser como ele, quando comecei a escrever. Hemingway tinha a prosa viril, enxuta. Era amado pelas mulheres e admirado pelos homens. E viveu uma vida tão movimentada quanto a que você lê em sua ficção. Com seu porte de pugilista, Hemingway destruiu o estereótipo do escritor fisicamente frágil. Gostava de tudo que fosse áspero e trouxesse risco. Amava as touradas, e escreveu sobre elas como ninguém em Morte ao Anoitecer. Via no toureiro um personagem épico e heróico, a única estrela de espetáculo a desafiar a morte.

Caçou, pescou, foi correspondente de guerra, lutou boxe. Teve muitas mulheres. Foi macho no sentido mais nobre, e ainda assim escreveu páginas dotadas de um lirismo impressionante. Em Por Quem os Sinos Dobram, para mim e muitos seu melhor romance, a despedida do herói Robert Jordan de Maria é de fazer um cigaro búlgaro se enternecer. Jordan, americano, estava na Espanha lutando por seus ideais na Guerra Civil vencida pela direita de Franco. Leva um tiro e fica impedido de fugir com o grupo com o qual estava, cercado pelos vilões franquistas. Faz Maria, apaixonada, ir embora e atrasa os atacantes com o sacrifício da própria vida. “Viverei em você”, diz Jordan a Maria. Para os leitores brasileiros, a tradução ligeiramente empolada de Monteiro Lobato de Por Quem os Sinos Dobram tirou a simplicidade hemingwayana.  Um bom filme foi feito do grande romance.

Hemingway viveu na plenitude o Século Americano. Foi contemporâneo do surgimento do carro e do avião, e usou-os com frequência em sua vida de globetrotter. Sobreviveu a duas quedas de avião e a batidas sérias de automóvel. Respirou o ar provocador e culto de Paris nos anos 20, e mais tarde foi viver perto dos pescadores de Cuba, de onde acabou saindo no final da vida por causa da Revolução de Fidel. O Velho e o Mar, que valeu a ele primeiro o Pulitzer e em seguida o Nobel de 1954, é a história de um pescador cubano. “O homem pode ser destruído, mas não derrotado”, diz Hemingway ali. Ele dizia que O Velho e o Mar, um romance curto ou um conto longo, era um livro cubano, e não americano.

Hemingway foi ainda mais influente que o outro grande escritor americano de seu tempo, F.S. Fitzgerald, autor de Gatsby e Suave é a Noite. Não tanto pelos méritos literários, em que ambos se equivaliam a despeito de suas diferenças de estilo, mas pela vida de mocinho de filme que levava.  Fitzgerald foi demasiadamente consumido pela insanidade mental da mulher,  Zelda, e nisso acabou centrando sua vida e sua obra. Hemingway, neste sentido, foi muito além. Você podia até se perguntar como diabos ele arrumava tempo para ler e escrever em meio a tanta coisa que fazia. Seu maior seguidor foi Norman Mailer, um escritor interessante e que deve ser lido apesar de ser bem menor que seu ídolo.

Pegava todas

HEMINGWAY encarnou os Estados Unidos no que o país teve de melhor antes de se tornar uma superpotência arrogante e militarista depois da Segunda Guerra Mundial. Se você tivesse que dar um rosto para os Estados Unidos no Século Americano ele teria talvez o de Hemingway: olhos que brilham e captam tudo ao redor, magnetismo, charme másculo e singular que parece tornar pequeno tudo ao redor. Hemingway testemunhou a construção e o fastígio do império americano, mas não seu declínio, vítima dos excessos que desvirtuaram uma cultura frugal e simples.

A velhice machucou o grande homem. Pressão alta, diabete, arteriosclerose. Depressão. Cada idade tem suas vantagens, escreveu Cícero num clássico sobre a velhice. Hemingway ou não leu Cícero ou simplesmente não concordou. Um homem não pode ser derrotado, ele escreveu. Destruído, sim. Quando atirou contra a boca pouco antes de fazer 62 anos, repetindo o gesto suicida do pai, Hemingway estava sendo apenas coerente com suas convicções, aceitando a destruição mas não a derrota.

Paulo Nogueira

O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

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