“Destituição de Dilma Rousseff não tinha nada de constitucional”, diz o jornal francês Le Figaro

Atualizado em 19 de fevereiro de 2023 às 11:54
Lula ilustra democracia na América Latina em artigo do jornal Le Figaro

Enquanto a imprensa tradicional insiste em atacar Lula e o PT por falarem na destituição de Dilma Rousseff como um golpe de Estado, até setores conservadores do exterior reconhecem a ilegalidade da manobra. O artigo “Onde está a democracia na América Latina?”, publicado no último domingo no Le Figaro, o mais influente jornal de direita da França, diz que o impeachment “não tinha nada de constitucional”.

O artigo de Patrick Bèle insere a destituição de Dilma Rousseff num contexto de crise da democracia na América Latina.

“O Peru é agitado por graves distúrbios desde a destituição do presidente Pedro Castillo em dezembro passado. Os enfrentamentos entre policiais e manifestantes que reivindicam eleições antecipadas e a convocação de uma Assembleia Constituinte resultaram em mais de 50 mortos. No Brasil, dia 8 de janeiro, os partidários do ex-presidente Bolsonaro invadiram os principais locais de poder em Brasília. No Haiti, o país escapa totalmente ao controle do Estado e está sob o comando de grupos delinquentes que semeiam o terror no país”, contextualiza.

“Na Venezuela, o presidente Maduro se aproveita dos erros de uma direita fora da realidade e do retorno de interesse dos Estados Unidos por seu petróleo para consolidar seu poder autoritário”.

O jornal menciona igualmente o caso da Nicarágua, onde “Daniel Ortega e sua esposa atacam os representantes da Igreja depois de ter prendido ou forçado ao exílio o conjunto dos representantes da oposição. Eles finalmente libertaram, dia 9 de fevereiro de 2023, extraditados para os Estados Unidos e retiraram a nacionalidade de 222 prisioneiros políticos”.

“Além das especificidades nacionais, todas essas situações mostram que a democracia está fragilizada no sub-continente”, sustenta.

“Nós não estamos na mesma situação dos 1970 com o cortejo de regimes ditatoriais (Argentina, Paraguai, Chile, Brasil, Uruguai, etc), mas a preocupação das organizações em defesa dos direitos humanos aumenta. Se os sistemas democráticos são atualmente perturbados no mundo inteiro, a América Latina apresenta especificidades: o peso do narcotráfico, a corrupção, a fragilidade dos Estados e as fortes desigualdades sociais”, analisa.

A publicação vê a Operação Lava-Jato num contexto de perda de confiança nas instituições. “A Operação Lava-Jato, envolvendo a Petrobras, que levou Lula à prisão, afetou o conjunto da classe política brasileira, todos os partidos misturados. Lula foi finalmente inocentado. A suprema corte estimou que o juiz demonstrou parcialidade contra ele. O caso Odebrecht, impactou a classe política na região, levando um ex-presidente peruano ao suicídio”.

O Le Figaro fala em “tentações populistas” como resultado desse processo.

“Essas situações criam uma forte rejeição da classe política no poder. E abrem o caminho a novatos cujo único mérito é de nunca ter exercido o poder.”

“O caso mais emblemático dessa onda populista é Jair Bolsonaro. Depois da destituição de Dilma Rousseff, em 2016, uma destituição que não tinha nada de constitucional, o Brasil foi dirigido por dois anos pelo governo não eleito de Michel Temer. Esse caos político conduziu à vitória de Jair Bolsonaro”, afirma.

“Seus quatro anos no comando do país lhe permitiram ocupar um lugar importante no mundo político brasileiro. Se finalmente dia 30 de outubro passado, ele perdeu a eleição presidencial para Lula, o bolsonarismo saiu vencedor dessas eleições gerais. O Partido dos Trabalhadores dispõe de 77 eleitos à Câmara dos Deputados enquanto o Partido Liberal de Bolsonaro conta com 99, num total de 513 cadeiras. E os partidários de Bolsonaro não se desarmam. Nós o vimos dia 8 de janeiro em Brasília”.

Se para a publicação, alguns países da região perpetuaram e perpetuam o passado de ditaduras militares, a eleição de novos governos de esquerda demonstra a resistência da democracia.

“Durante os anos 1970 et 1980, diversos países latino-americanos eram dirigidos por ditaduras militares. Hoje, além de Cuba, que segue sob o regime militar castrista desde 1959, a Nicarágua e a Venezuela são dirigidas por regimes autoritários onde as liberdades e os direitos dos cidadãos não são respeitados. É na Nicarágua que a situação é mais dramática.”

“No Brasil, Bolsonaro engajou uma vasta militarização do aparelho de Estado. Em 2020, 6.157 militares ocupavam funções administrativas, contra 2.765 na sua chegada ao poder em 2018.”

“Esse cenário sombrio da situação da democracia na América Latina não deve fazer esquecer os sinais positivos.”

“Na Colômbia, a vitória de Gustavo Petro faz dele o primeiro presidente de esquerda nesse país. Ex-guerrilheiro, ele reativou as acordos de paz com assinados com as Farc em 2016 e tenta negociar com os demais grupos armados remanescentes.”

“No Chile, Gabriel Boric era ainda há alguns anos um militante estudantil. Ele representa uma verdadeira renovação da classe política, esperada pelos chilenos. A eleição de Lula no Brasil deve permitir melhorar a situação dos indígenas da Amazônia e retomar a luta contra o desmatamento. O presidente Lula visitou dia 21 de janeiro o território onde vivam os Yanomamis, na fronteira com a Venezuela. Essa população dizimada pela exploração florestal e a mineração ilegal que arruínam o meio ambiente e seus recursos.”

“Durante o mandato de Jair Bolsonaro, mais de 500 crianças desse povo morreram de desnutrição ou de doenças. O novo presidente Lula despachou no local uma ajuda humanitária de urgência”, observa.

O periódico salienta que a satisfação em relação à democracia na América Latina é de 24%, segundo uma pesquisa, o “pior índice desde 1995”.

A reflexão é importante porque revela uma clareza no plano internacional de um processo que a parte da grande imprensa nacional persiste em esconder. Um esconderijo que impede o exame completo das causas que levaram à ascensão do bolsonarismo e a tentativa de (novo) golpe e, portanto, a um enfrentamento parcial.

O que é internacionalmente percebido como um disfuncionamento ou origem de um processo de ataque à democracia, leia-se a Lava-Jato e o golpe contra Dilma, é isoladamente apresentado por parte da imprensa nacional como exemplaridade.

Ela não quer dizer a verdade porque a verdade é insuportável: o golpismo de 8 de janeiro e as mentiras em massa do bolsonarismo fazem parte de uma conduta que ela mesma adotou em 2016. Em que ela reincidiu, se considerado 1964.

Ela fabricou grandes mentiras, um fato potencialmente mortal para o que legitima sua própria existência: o discurso de guardiã dos fatos, da verdade e da democracia. Ou ela se redime e elimina um dos últimos pilares do veneno que quase destruiu a democracia no maior país da América Latina – o discurso do impeachment legal e a caixa de pandora que ele abriu – ou dificilmente nos livraremos da ameaça golpista. Pois ela continuará a ser alimentada.