Le Monde diz que Brasil de Bolsonaro é assombrado por “fantasmas do nazismo” e relembra conivência da ditadura

Atualizado em 14 de fevereiro de 2019 às 14:05

“Provavelmente a gente está diante de um projeto de Estado nazista, de eliminação da população negra, da população pobre. Isso não se dá apenas no projeto anticrime, de Moro; é um projeto transversal, que está presente em todos os ministérios do governo Bolsonaro e é tipicamente um projeto nazista porque quer precarizar e eliminar uma parte da população”.

Com essas palavras terminava o ESSENCIAL DCM, na última sexta-feira, 8 de fevereiro.

Dias depois, entrevista com um judeu francês, Yoan, reforçava o paralelo: “​Eu acredito que Bolsonaro é para os LGBTs o que Hitler era para os judeus. Estamos em parte diante do mesmo tipo de personalidade, em parte no mesmo tipo de situação econômica que faz com que as pessoas estejam dispostas a fechar os olhos”.

Agora, o Le Monde publica: “Os fantasmas do nazismo assombram o Brasil de Bolsonaro”.

A reportagem desta quinta-feira, assinada por Claire Gatinois, repercute as revelações da Folha de S. Paulo sobre o pai do atual ministro das relações exteriores e entrevista diferentes ativistas na França sobre as ligações do Brasil e da América Latina com o nazismo, da ditadura militar até a atualidade.

“O jornal revela que Henrique Araújo, pai de Ernesto Araújo, contribuiu a impedir a extradição do criminoso nazista Gustav Franz Wagner nos anos 1970 na época da ditadura militar (1964-1985)”.

Traça o percurso do nazista: “O antigo subcomandante do campo de extermínio de Sobibor na Polônia, como diversos ex-membros da SS (milícia ligada a Adolf Hitler e o Partido nazista), fugiu da Europa, encontrando refúgio no Brasil, depois de uma passagem pela Síria. Tornou-se vigia de uma propriedade no estado de São Paulo. Aquele cujo sadismo e brutalidade lhe valeram o apelido de ‘a fera’, tentava fazer seu passado ser esquecido”.

O Le Monde lembra que Gustav Wagner nasceu em Viena, em 1911, integrou o partido nazista aos vinte anos e se tornou “ilustre” em 1940 por sua participação no genocídio de pessoas com transtornos mentais no centro de exterminio de Hartheim, na Áustria.

“Louvado nos escalões da SS por sua eficácia e sua ​expertise no uso criminoso do monóxido de carbono, ele, dois anos depois, no campo de Sobibor, onde foi braço direito de Franz Stangl, foi encarregado de fazer a triagem dos deportados, destinados à câmara de gás no trabalho forçado”.

O jornal francês descreve os horrores praticados por Gustav Wagner, descrito como “um bruto pronto para chicotear os prisioneiros sem motivo. Ele teria, entre outras barbáries, batido até a morte em dois detentos que não falavam alemão.

Sob o pretexto de que eles não obedeciam a suas ordens, atirou na cabeça do jovem Abraham, na época com quinze anos de idade, na presença de seus irmãos, porque o adolescente se mostrava incapaz de se levantar de seu colchão de palha. Matou um recém-nascido nos braços de sua mãe”.

Aproximadamente 250 mil pessoas foram assassinadas no campo de concentração em Sobibor, diz a publicação. E que Gustav Franz Wagner foi desmascarado pelo “caçador de nazistas” Simon Wiesenthal, em 1978, “que garante ao jornalista do Jornal do Brasil Mario Chimanovitch ter reconhecido Gustav Wagner na foto de uma festa no hotel Tyll, em Itatiaia, no estado do Rio de Janeiro, para celebrar o aniversário de Hitler”.

O Le Monde lembra que Wagner se entregou à polícia brasileira onze anos depois da extradição em 1967 de seu “compadre”, Franz Stangl, que também havia se refugiado no Brasil. Wagner estava “aterrorizado com a ideia de ser capturado pelo Mossad, o serviço secreto israelense”.

Pedidos de extradição foram feitos por três países, Israel, Polônia e Áustria. No entanto, “foram negados um a um pelo procurador geral da época, Henrique Araújo. O pai do ministro de Jair Bolsonaro recusou a demanda do Estado judeu, argumentando que este não existia no momento dos crimes. Para a Polônia e Áustria, destacou a prescrição dos homicídios (20 anos), que ele se recusou a qualificar como crime contra a humanidade”.

Gustav Franz Wagner, comandante nazista do campo de Sobibor que viveu no Brasil

O periódico francês lembra o termo utilizado: “esse último argumento não vale ‘teoricamente’, escreveu ele ao pedido da Alemanha, que já havia formulado pedido de prisão em 1967”. E observa também o papel do Supremo Tribunal Federal: “Henrique Araujo exige provas em um dossiê de mil páginas. Um ano depois, os juízes da Corte Suprema são provocados a se pronunciar, recusando a extradição. Em 3 de outubro de 1980, Gustav Wagner é encontrado morto, com uma faca no peito. Fala-se em suicídio”.

A reportagem cita Henrique Araújo como “conhecido por seu apoio à censura” e diz que ele “teve um papel chave” no caso. Ao Le Monde, Bruno Leal, professor de história contemporânea na Universidade de Brasília, disse: “Se faltou sensibilidade e vontade, sua análise é tecnicamente correta em relação às leis da época”.

Serge Klarsfeld, ativista franco-romeno, “caçador de nazistas”, recorda ao Le Monde: “na época, na América Latina, tanto em ditaduras como em democracias, a maioria das demandas (de extradição) eram recusadas”. A publicação conta que o historiador e advogado da causa dos deportados tentou, em vão, a extradição de Walter Rauff, no Chile, sob a presidência de Salvador Allende.

“Os regimes militares na América Latina foram coniventes com criminosos nazistas. Isso não é um mistério. Mas numa época na qual o Brasil parece perder a memória, não custa nada relembrá-lo”, afirmou ao jornal francês Géraldine Schwarz, escritora cuja obra conta a história de sua família, lembrando as falhas na memória da época nazista, nas quais a extrema direita navega hoje.

“O discurso dos atuais membros do atual governo demonstram um alinhamento ideológico com certas ideias sombrias dos anos 1930”, afirma-lhe o historiador Michel Gherman.

O Le Monde lembra de uma entrevista de Jair Bolsonaro em 2012 ao CQC: “depois de ter qualificado a ditadura militar de ‘excelente’ e confessado sem vergonha ter batido em sua mulher, considerou Hitler como um ‘grande estrategista’. Numa parte cortada da versão que foi ar, mas ainda disponível no Youtube, ele compara o holocausto ao ‘genocídio’ provocado pelos desvios de fundos à saúde, deixando entender que os juízes teriam, durante a guerra, morrido de fome e de frio”.

Não é apenas o historiador Michel Gherman que vê paralelos entre Bolsonaro e o nazifascismo.

Em novembro de 2018, a cientista política italiana Caterina Froio afirmou ao DCM: “Bolsonaro não me faz pensar nos líderes populistas contemporâneos da Europa. Eu tenho dificuldade para compará-lo com Marine Le Pen ou Matteo Salvini”, disse.

“Em relação a essas pessoas, Bolsonaro é um pouco mais extremo porque ele tem um culto típico do militarismo, uma estética que encontrou-se mais na formação da extrema direita e no pós-Guerra na Europa e mesmo em Mussolini, que era chefe do Exército durante a ditadura”.