Le Monde: Macron quer surfar na popularidade de Lula

Atualizado em 26 de março de 2024 às 16:40
Le Monde repercute agenda de primeira visita de Macron ao Brasil

A visita do presidente francês Emmanuel Macron ao Brasil se inicia nesta terça-feira, mas a repercussão já é vista como positiva para o jornal de referência de Paris: “Entre o Brasil e França, um entendimento reencontrado”, noticia o Le Monde.

O período é delicado para o chefe do Eliseu, cujos candidatos às eleições parlamentares europeias de junho aparecem em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, atrás da extrema direita. Segundo Le Monde, a visita do mandatário ao Brasil é uma dupla tentativa para Macron quanto para Lula de se reforçar no plano interno.

“Aproximando-se de um dirigente liberal em termos econômicos, o chefe do Planalto procura primeiro fazer um aceno aos partidos de centro e direita no interior de sua grande coalizão. Ao contrário, o locatário do Eliseu quer puxar tapete de oposição mostrando-se com uma das figuras mais populares da esquerda mundial, a menos de dois meses das eleições europeias”, compara.

Segundo o quotidiano de referência no país, a visita é marcada por um caráter inédito. “Emmanuel Macron deverá ser recebido em Belém por Luiz Inácio Lula da Silva pessoalmente. Apesar de seus 78 anos, o presidente de esquerda não hesitou em efetuar um longo trajeto de 1.600 quilômetros para receber pessoalmente seu hóspede. Um sinal de importância acordado a esta visita e da reativação das relações entre ambos países”.

“Precisa-se remontar ao mandato de François Hollande em 2016, ou seja, oito longos anos, para encontrar um rastro de visita de um presidente francês ao Brasil (e até mesmo 2013 para o caso de uma visita de Estado). Um eclipse devido essencialmente ao mandato tumultuado de Jair Bolsonaro (2019-2023), que não hesitou a insultar amplamente Emmanuel Macron e sua esposa em meio a uma crise diplomática sem precedentes, em 2019, tendo por plano de fundo os incêndios na Amazônia”.

O jornal elenca um histórico recente de prioridades acordadas pelo mandatário francês ao atual presidente do Brasil. “Desde novembro de 2021, ele recebia com grande pompa, com tapete vermelho e exército republicano, um Lula que era apenas candidato às eleições presidenciais”.

“O chefe de Estado foi um dos primeiros a felicitá-lo por sua vitória eleitoral dia 30 de outubro de 2022 frente à extrema direita de  Jair Bolsonaro”.

“Lula também foi uma das estrelas da Cúpula de Paris para um Novo Pacto Financeiro Global, em junho de 2023”.

Divergências

A publicação francesa aponta como consideráveis as divergências entre as posições internacionais defendidas por ambos países.

“Os temas que incomodam não faltam. As posições de ambos países divergem sobre os dois conflitos que dominam a agenda internacional, guerra conduzida pela Rússia na Ucrânia e a de Israel na Faixa de Gaza. Essas duas crises vêm aprofundar a clivagem entre os países do chamado ‘Sul Global’ e os ocidentais, acusados de praticar ‘dois pesos e duas medidas’ em sua relação com Israel, na comparação com sua posição para com a Rússia”.

“Ao mesmo tempo que condenou a agressão do Kremlin contra Kiev, Lula, que presidira em 2025 o grupo dos BRICS ampliado julgou Volodymyr Zelensky ‘tão responsável quanto’ Putin pela guerra na Ucrânia a tal ponto que ele se disse disposto a receber Putin em Brasília apesar do mandado de prisão emitido contra ele pelo Tribunal Penal Internacional”, lembra. 

“O brasileiro propôs a criação de um ‘grupo pela paz’ e a abertura de negociações. Exatamente o inverso de Macron, que passou de pomba a gavião”, contrasta.

“Quanto à guerra em Gaza, a posição francesa, que consiste em buscar um equilíbrio entre palestinos e israelenses, difere da do Brasil, em conflito aberto com o governo de Benjamin Netanyahu.

“O essencial vai ser apresentar nossa posição, explicá-la, e buscar pontos de convergência”, aponta ao jornal francês um conselheiro do palácio presidencial, numa alusão a um projeto de resolução que Paris quer apresentar ao Conselho de Segurança da ONU.

Como o Brasil é visto

De acordo com a reportagem do Le Monde, o presidente do país enxerga o Brasil como “parte das potências emergentes suscetíveis de exercer um papel-chave nas questões do mundo”.

“O país exerce este ano a presidência do G20 e sediará em 2025, em Belém, a COP30. O chefe de Estado busca apaziguar, dentro da medida do possível, os assuntos de divergência, na esperança de facilitar uma ação comum sobre os grandes temas mundiais, a começar pela luta contra o aquecimento global”.

Mercosul

A reportagem desta terça-feira do jornal Le Monde lembra do que o acordo de livre-comércio negociado entre o Mercosul e a União Europeia levou a uma subida de tom, em particular de Lula contra a União Europeia, e principalmente a França, acusando-a de protecionismo excessivo, querendo que o Mercosul ceda em tudo enquanto ela não cede em nada.

“Visivelmente incomodado pelo assunto, o círculo do chefe de Estado prefere evitar o assunto, observando que cabe à Comissão Europeia negociar o texto e garante que o assunto não será abordado oficialmente durante a visita ao Brasil”.

O interesse do governo francês, segundo a publicação parisiense, é “reativar a relação econômica entre os dois países”, tendo em vista a fronteira de 730 quilômetros com a Guiana Francesa.

Como adiantado pelo DCM, os interesses de empresas como o Carrefour, acusada de participar da degradação do meio ambiente brasileiro, em particular da Amazônia, estarão entre as principais motivações da delegação francesa.

“Emmanuel Macron fará a viagem na companhia de uma grande delegação de homens e mulheres de negócios tais quais o Carrefour, Airbus, a empresa de cimentos Vicat e diversas pequenas e médias empresas em setores inovadores”, enumera o Le Monde.

“A França se gaba de ser, por meio de suas empresas metropolitanas, o quarto maior investidor estrangeiro no Brasil, com 520 mil empregos e 61 bilhões de euros em lucros.”

“O chefe de Estado francês deverá assim participar em São Paulo de um grande ‘fórum de negócios’ na presença de empresários dos dois países. Um jeito de mostrar que as relações econômicas podem prosperar sem um tratado de livre-comércio”, afirma.

Defesa

Ainda de acordo com o Le Monde, a defesa será um dos elementos centrais da visita, em particular durante a passagem pela base de Itaguaí no Rio de Janeiro, “onde estão atracados submarinos de fabricação franco-brasileira, destinados a proteger os 8.500 quilômetros de costa do gigante latino-americano, construídos num acordo de cooperação militar assinado em 2008, durante o segundo mandato de Lula”.

O diário lembra que um segundo submersível a propulsão “clássica” batizado de “Humaitá” foi colocado em operação em janeiro e que um novo submarino a propulsão nuclear está em fase de estudos.

Hospitalidade máxima

Le Monde revela que o acolhimento de Emmanuel Macron em Brasília, onde está previsto um almoço informal na última etapa da viagem, em 28 de março, terá direito a um protocolo inédito, considerado de nível máximo no âmbito diplomático.

“Emmanuel Macron não será recebido no Planalto, local de trabalho do chefe de Estado brasileiro, mas na intimidade da residência oficial do Alvorada. Um privilégio raro, que não foi concedido a nenhum outro líder europeu desde o retorno de Lula ao poder”.

“Trata-se do protocolo do mais alto nível de protocolo possível. Espera-se que os franceses fiquem sensibilizados”, aponta um diplomata brasileiro ao jornal da França.

O jornal não esclarece o que o Brasil busca por meio dessa sensibilização, se quer por exemplo derrubar o anunciado veto francês nas negociações do acordo Mercosul-UE, mas é possível imaginar que sim, visto que é o assunto de ataque frontal.

Ainda mais levando em consideração que a presidência francesa comunicou que o tema não seria abordado oficialmente.