“Lula é uma referência institucional e uma figura inspiradora”, diz ao DCM eurodeputado espanhol

Atualizado em 15 de dezembro de 2021 às 15:57
Eurodeputado
O eurodeputado Javier (Javi) López. Foto: Assessoria de imprensa/Socialistas Espanhóis no Parlamento Europeu

As eleições presidenciais no Brasil são vistas na Europa como um momento decisivo para a democracia ocidental, razão que os social-democratas do continente mobilizam por ter convidado o ex-presidente Lula em novembro passado ao Parlamento Europeu. “Queríamos escutar suas opiniões num momento transcendental para o Brasil, que consideramos decisivo para as eleições do ano que vem, tanto para o Brasil quanto para a América Latina e a democracia no ocidente”, afirma ao DCM Javi López, eurodeputado espanhol.

Nesta entrevista exclusiva, o presidente da Delegação na Assembleia Parlamentar Euro-Latinoamericana da União Europeia comenta o recente encontro do líder da extrema direita espanhola com o presidente do Brasil. “Bolsonaro e sua figura se converteram na última grande referência do conjunto da direita radical e da extrema direita no mundo”.

López defende os resultados da coalizão de esquerda que governa a Espanha, entre o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) e o Unidas Podemos, aliança que chega à metade da legislatura com um orçamento aprovado pelo parlamento. “Dá estabilidade ao governo pois tem capacidade de olhar a longo prazo para a segunda parte da legislatura”.

Presente na conferência de Lula no último mês de novembro no Parlamento Europeu, o eurodeputado faz um balanço do evento e diz o que pensa da articulação com Alckmin.

O catalão nascido em Madri diz quais são as perspectivas para a Europa com o novo governo de centro-esquerda alemão. Comenta também o projeto de lei que propõe revisar a lei de anistia para investigar os crimes cometidos pela ditadura de Francisco Franco.

DCM: Qual o significado da visita de Santiago Abascal, líder da extrema direita espanhola, a Jair Bolsonaro na semana passada?

Javi López: Vi as fotografias de Abascal com Bolsonaro e a bandeira da Espanha. A visita é sintomática de que existe um enorme uma grande coordenação dos membros que poderíamos denominar de “internacional reacionária” no mundo. Muitos a denominam “direita radical”, que faz discursos soberanistas.

Agora, durante a pandemia, em muitos lugares estão colocando a ciência em dúvida na aplicação de políticas públicas. Ela tem um discurso contra a igualdade de gênero. Muitas vezes, um discurso que culpabiliza a pobreza, os pobres, pela sua pobreza. Ela despreza as mudanças climáticas, a proteção do meio ambiente. Sua única resposta é identitária.

Embora pareça paradoxal, aqueles que dizem que a soberania nacional e a retração sobre si é a única resposta estão se coordenando pelo mundo. Vemos isso na Europa, onde houve encontros do conjunto extrema direita, onde o Vox exerceu um papel importante, mas liderados por importantes governos, como o da Polônia e da Hungria. Nesse mapa da internacional reacionária, depois da queda de Trump, o maior ator no mundo é Bolsonaro.

DCM: É o maior ator do mundo, mesmo sendo considerado um pária internacional?

Sim, é um pária internacional, na comunidade internacional, isso é evidente. Basta olhar as imagens dele participando de cúpulas internacionais e não podendo entrar numa cafeteria porque não está vacinado, pois decidiu não se vacinar.

Ao mesmo tempo, o Brasil é um gigante demográfico, é um gigante econômico, cultural, com um grande impacto no resto do mundo. Por isso, a presidência de Bolsonaro e sua figura se converteram na última grande referência do conjunto da direita radical e da extrema direita no mundo.

DCM: Isso ajuda a extrema direita eleitoralmente na Espanha?

Não sei. Sinceramente, creio que não. Não acredito que lhe impulsione eleitoralmente, mas os transforma em mais perigosos, ao meu modo ver, tal qual está demonstrando a presidência de Bolsonaro no Brasil, mas também algumas experiências da direita radical na Europa, é profundamente perigoso chegarem ao poder.

DCM: Em que sentido?

Durante a gestão da pandemia, (Bolsonaro) foi responsável por uma das piores gestões do mundo, pela sua negação da ciência, pelo seu desprezo pela vida humana. Nós vimos também com a presidência de Trump como a extrema direita escapa em implementar as “engrenagens” democráticas. Suas conexões internacionais a fortalecem, mas não creio que a projetem eleitoralmente como uma potência.

De fato, há essa fotografia entre Santiago Abascal e Jair Bolsonaro. Nesse domingo, também há eleições muito importantes no Chile, onde haverá o segundo turno de eleições presidenciais num país que neste exato momento está em uma constituinte e tem a possibilidade de que seja escolhido um candidato Kast, muito vinculado a Bolsonaro e à extrema direita europeia.

DCM: Que é apoiado, imagino, pelo Vox…

Exatamente.


DCM: Falando em alianças internacionais, você esteve na conferência do ex-presidente Lula no Parlamento Europeu. Qual o balanço deste evento?

Um balanço positivo. Para nós, era muito relevante ter um encontro entre os progressistas de amplo espectro europeus e latinoamericanos. Contamos com a presença, por uma mensagem (em vídeo), de Claudia Sheinbaum, governadora da Cidade do México, e com a presença do ex-presidente Lula, uma das figuras mais inspiradoras para os progressistas nos últimos 20 anos.

Sua presença se inscreve numa turnê pela Europa, em que visitou Berlim, Bruxelas, Paris e Madri. Nessa visita, pôde se encontrar com Olaf Scholz, (agora) novo chanceler da Alemanha, Emmanuel Macron e o presidente Sanchez e aqui no Parlamento Europeu, no plenário. Fez um discurso muito relevante para nós por duas razões.

Uma, por seu passado, pela relevância que tem sua presidência. Foi capaz de manter um crescimento inclusivo para o país, combateu a pobreza, transformou o Brasil em protagonista do debate internacional. Dois, pelo que está passando e tem de passar no Brasil, as eleições presidenciais do ano que vem e com uma presidência que fez a pior gestão da pandemia no mundo e está colocando à prova a democracia brasileira.

Queríamos mostrar nosso total apoio à luta pela democracia brasileira, que entendemos que Lula está fazendo neste momento. A centro-esquerda, os progressistas, os social-democratas, nos sentimos entrelaçados.

DCM: Nesse sentido, esse evento tinha uma importância só para os setores progressistas?

Não. Para os setores progressistas de um amplo espectro. Lula é uma referência institucional, muito além dos progressistas, com uma presidência exitosa, considerada exitosa pela comunidade internacional.

Mas o encontro que organizamos, nós, o grupo dos Socialistas e Democratas, a família social-democrata europeia, tinha importância política para as esquerdas europeias, que veem Lula como uma referência. Nesse evento, organizado pelos social-democratas, queríamos escutar suas opiniões num momento transcendental para o Brasil, que consideramos decisivo para as eleições do ano que vem, tanto para o Brasil quanto para a América Latina e a democracia no ocidente.

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Lopez (à direita) em encontro com Lula e delegação brasileira no Parlamento Europeu. Foto: Assessoria de imprensa/Javier Lopez


DCM: No início do governo Sanchez, apontava-se que sua presidência não duraria muito tempo e que sua coalizão era muito frágil. Que balanço você faz da experiência da esquerda no poder nesses últimos três anos?

Eu faria um balanço francamente positivo. Foi um tempo complexo, especialmente por causa das consequências econômicas e sanitárias da pandemia. Mas o primeiro governo de coalizão na história da Espanha é estável politicamente, na presidência Sanchez e nos dois anos de coalizão e agora se completou a metade da legislatura, que acabou de aprovar o orçamento, o que dá estabilidade ao governo pois tem capacidade de olhar a longo prazo para a segunda parte da legislatura.

Foi capaz de desenvolver proteção social durante esse momento tão complicado em termos econômicos: um escudo social, um sistema de renda mínima, aumentar substancialmente como nunca antes o salário mínimo interprofissional, apostar em direitos individuais como a lei da eutanásia e contribuir para uma virada da política econômica europeia. É o que vai provavelmente caracterizar essa recuperação econômica pelo plano de recuperação fiscal NextGenerationEU, que permita dar início às transformações verdes e digitais em todo o continente.

A Espanha é provavelmente um dos principais beneficiados. Sanchez contribuiu muito. São características dele. Creio que colocou dois elementos no centro da discussão: a proteção social, que são os direitos das mulheres, e a luta contra as mudanças climáticas.

DCM: A Espanha tem uma direita bastante consolidada. Como a coalizão de esquerda está conseguindo se manter no poder?

Porque ela tem uma maioria parlamentar sólida. E demonstrou durante seu período de governo uma governança eficaz, uma gestão pública eficaz. Em segundo lugar, a direita espanhola, provavelmente devido à aparição do Vox, o que aconteceu nos últimos anos foi a sua radicalização.

Enquanto parte dos conservadores europeus como os conservadores alemães de centro-direita não pactuaram com a extrema direita alemã em nenhuma hipótese, na Espanha sua direita naturalizou a extrema direita como um sócio homologável ao resto em tempo recorde.

Foi isso que aconteceu na Espanha nos últimos anos: passamos do bipartidarismo ao multipartidarismo, ainda que os dois grandes atores continuem sendo o Partido Popular e o Partido Socialista. Mas o sócio preferido do Partido Popular é a extrema direita.

DCM: Nesse momento, há negociações entre Lula e Geraldo Alckmin. Esse tipo de coalizão entre esquerda e direita lhe surpreende?

Depende do momento do país. Agora, por exemplo, a democracia cristã chilena apoia Boric nesse segundo turno. As concertações têm uma parte de esquerda e de centro-direita, que apoia Boric, porque se entende que o país vive um momento de emergência diante do risco de uma ameaça autoritária.

Entendo que o Brasil, devido à presidência de Bolsonaro, forças moderadas de centro-direita aceitam apoiar uma hipotética candidatura de Lula. Tudo depende do contexto.

DCM: E o contexto da Espanha é bastante diferente, o que lhes permite ter uma coalizão puramente de esquerda?

Exato. Creio que há muitos liberal-progressistas espanhóis que se veem refletidos no atual governo.

DCM: Um projeto de lei propondo revisar a lei de anistia aos criminosos da ditadura franquista está provocando muito debate na Espanha. Do que se trata exatamente?

Tem a ver com uma vontade de fazer política de memória. A Espanha viveu uma guerra e uma ditadura de 40 anos e foi capaz de passar em branco desde a morte de Franco em 1975 e a instauração de uma nova constituição, que nos permitiu nesses últimos 40 anos ter um regime de liberdades, de direitos, que a palavra fosse o articulador da nossa vida pública, que nos permitisse modernizar nessa etapa a nossa economia e entrar na Europa e na integração europeia em 1986.

Mas isso não nos torna como sociedade incapazes de olhar para trás e fazer políticas de memória que permitam um reconhecimento das vítimas no passado e aqueles que lutaram pela democracia no nosso país. Isso passa longe de reabrir feridas, o que se tem de fazer é curá-las.

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DCM: Há muita resistência na sociedade a esse projeto?

Há uma parte da direita que quer que o passado fique numa gaveta trancada. Há a sensação de que há uma parte da direita para a qual o passado da Espanha lhe incomoda. Creio que uma sociedade madura e uma democracia madura, consolidada, como a espanhola, tem que ser capaz de relacionar-se com seu passado e sua memória de forma natural e sem traumas.

Isso passa por um exercício de memória e reconhecimento do passado e daqueles que padeceram da ditadura, isso não deve ser um problema.

DCM: Esse projeto deve permitir declarar e processar pessoas que cometeram crimes na ditadura?

Existe esse debate sobre as consequências jurídicas da lei, cujo objetivo principal, depois de 40 anos, é um reconhecimento do passado e não prestar contas. O objetivo principal é o reconhecimento do passado, as responsabilidades do passado, não é abrir capítulos do passado, é nos reconciliar com a verdade do nosso passado.

DCM: A nova coalizão alemã, de centro-esquerda, também constitui algo inédito na história do país. Que significado essa coalizão tem para a Europa?

Um enorme significado. A Alemanha não é apenas o país demográfica e economicamente na União Europeia, senão provavelmente o ator mais influente dentro da Europa. O que Berlim decide guia o conjunto da política europeia.

O que a coalizão decidir, depois da vitória da social-democracia alemã, dos nossos companheiros do SPD, com Olaf Scholz à frente. É uma nova coalizão, que ao nosso modo de ver, deve ser capaz de abordar os problemas de seu tempo, entre social-democratas, liberais e verdes.

O objetivo do pacto de governo é o aumento da proteção social, o poder aquisitivo, um impulso europeu e a luta contra o aquecimento global, um pacto no qual nós nos vemos muito refletidos. É muito importante porque terá irradiação, influência sobre o conjunto da Europa e é uma fórmula que vemos como atrativa.

DCM: Mas o comando das Finanças pelos liberais não é uma ameaça para a Espanha, que já sofreu muito com os programas de austeridade?

É fato que não é uma das melhores notícias que o Ministério das Finanças esteja nas mãos do partido liberal, de Lindner. Mas o acordo de coalizão também deixa claro que as decisões são tomadas pelo conjunto do governo e quem está à frente do governo é o chanceler social-democrata Olaf Scholz, que esteve à frente das Finanças quando se negociou o fundo de recuperação europeu.

Ainda que os liberais estejam à frente do Ministério das Finanças, nós esperamos que a chegada do novo governo alemão consolide a virada econômica da Europa, que fez uma política expansiva, de investimento, diferente do que fez há dez anos, uma política de austeridade que se demonstrou contraprodutiva economicamente e com enormes problemas e riscos políticos, que se consolide essa virada agora que se tem que renegociar as normas fiscais na União Europeia.