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Mais uma vez, Carlinhos Brown escolheu o momento errado para dizer uma coisa certa sobre a mestiçagem. Por Nathalí Macedo

Ele

Carlinhos Brown sempre foi uma figura respeitada na Bahia. O aparente ostracismo engana apenas aos desavisados: Brown, na verdade, virou músico baiano pra gringo ouvir há muito tempo.

Tente você, cidadão baiano, entrar no Sarau do Brown: não é lugar pra você, porque você, cidadão baiano não-rico, certamente não poderá pagar pelo ingresso.

Brown virou baiano gourmet. E, a partir desta posição, achou por bem dizer – na mesma semana em que um repórter global é afastado por racismo – que “essa coisa de Bahia negra não tá com nada.”

Em primeira análise, tal afirmação parece absurda. Salvador é a maior cidade negra do mundo fora da África – aqui tem preto pra caralho, meu caro.

Lida com mais cuidado, entretanto, a assertiva de Carlinhos Brown não é apenas coerente, é também necessária. Por isso as tantas e esperadas represálias – em que pese ter sido dita em um momento que parece ter sido cuidadosamente escolhido como o momento errado.

Abraçar a negritude baiana é abraçar a sua mestiçagem. Temos aqui negros de todos os tons. Cabelos em todos os formatos. Gente de todas as raças e de todos os jeitos. Se há um lugar que, em sua essência, brinda a diversidade, esse lugar é a Bahia, e eu, baiana, me orgulho disso.

Não apenas a Bahia precisa abraçar sua mestiçagem: o Brasil inteiro precisa fazê-lo, e não é de hoje.

O racismo à brasileira – aquele sutil, velado, em que mestiços levantam-se contra negros e negros menos negros levantam-se contra negros mais negros e negros mais negros levantam-se contra negros menos negros – não faz nenhum sentido, e surge, me atrevo a dizer, de nossa incompreensão acerca de nosso próprio lugar.

Somos colonizados. Nascemos de uma mestiçagem que nos custou caríssimo e nos violenta até hoje – mas, queiramos ou não, existe.

Somos mestiços porque colonizadores portugueses estupraram índias. Porque senhores de engenho engravidaram suas escravas. Somos mestiços graças a uma caminhada marcada por sangue, por isso é compreensível que a comunidade negra reivindique a Bahia como uma Bahia negra, mas não é inteligente.

A questão é que isso nos coloca em cheque: se não somos uma Bahia negra, como delimitar e proteger nossa negritude?

Aceitar a mestiçagem não significa negar a negritude, porque – me sinto ridícula explicando o óbvio – a negritude faz parte da mestiçagem. Mais do que isso: a negritude se coloca de uma outra maneira quando compreendida a partir da mestiçagem.

Aniquilar o racismo à brasileira depende de uma mudança de paradigma simples: não há Bahia negra, não há supremacia branca no Sul, não há um Brasil com pretos e brancos em grupos muito distintos preparados para um combate necessário.

Há um Brasil mestiço, que precisa, antes de discutir o racismo com seriedade, aceitar-se mestiço.

Viva a Bahia-luso-afro-hispânica, viva o Brasil luso-afro-hispânico e viva Carlinhos Brown.

Nathalí Macedo

Escritora, roteirista, militante feminista, mestranda em Cultura e Arte. Canta blues nas horas vagas.

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Nathalí Macedo

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