Como Marine Le Pen quer implantar uma ditadura racial na França

Atualizado em 18 de abril de 2022 às 7:26
Le Pen
Marine Le Pen foi recebida por Vladimir Putin no Kremlin, em 24 de março de 2017, a um mês do primeiro turno das eleiçoes presidenciais. Foto: Kremlin/Wikimedia Creative Commons

As mulheres que quiserem não terão mais o direito de usar o véu na França se Marine Le Pen for eleita presidente dia 24 de abril. A proposta da candidata de extrema direita faz parte de um programa que legaliza o apartheid e anuncia uma ditadura racial.

Um dos seus principais objetivos: “Erradicar as ideologias islamitas e o conjunto de suas redes no território nacional”. Daí a relação com o traje. “O véu é um uniforme islamista e não muçulmano, é o uniforme de uma ideologia, não de uma religião”, afirmou em entrevista de rádio nesta terça.

“Lutamos contra a imigração, não contra os imigrantes. Lutamos contra uma ideologia totalitária que ataca todos os fundamentos da nossa constituição. Portanto, amanha o véu será proibido”, anunciou também ao radio, no ultimo dia 7. “Por que você não proíbe a quipá também?”, perguntou um jornalista em outra emissora. Sem resposta.

Destruição do Direito

“Parar a imigração descontrolada” é o pilar do programa de Le Pen. Para atingir seu objetivo, sua proposta é violar diversos princípios do Direito francês, europeu e internacional. A começar por um dos princípios do lema de seu país, a igualdade, como na proposta de “reservar as ajudas sociais aos franceses, e condicionar a cinco anos de trabalho na França o acesso a ajudas sociais”.

Num cenário econômico de precarização do direito trabalhista, principalmente com as grandes plataformas digitais ou o estatuto de “autoempreendedor”, qual será a definição de trabalhador? Considerando o lugar das minorias étnicas nessas condições, em especial de origem africana, se hoje podem se beneficiar do sistema social sob o princípio da igualdade, com Le Pen eleita, os que chegaram há menos de cinco anos ficarão ainda mais pobres. Mas se a pressão começa pela eliminação de ajudas sociais, o que impede que comprometa mais tarde o acesso ao sistema de saúde?

Separar o sistema social segundo a origem é destruir o artigo primeiro da Constituição, “a França é uma República indivisível, laica, democrática e social.” Institucionalizar a segregação é uma das prioridades lepenistas: “Assegurar a prioridade nacional de acesso à habitação social e ao emprego”.

Outra promessa de Le Pen é “expulsar sistematicamente os clandestinos, delinquentes e criminosos estrangeiros”. O amalgama é mais uma proposta de atacar o Direito. “As expulsões coletivas de estrangeiros são proibidas”, diz o artigo 4 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Por expulsões coletivas, entende-se “toda medida obrigando estrangeiros, enquanto grupo, a deixar um país”.

Antes da crise sanitária da Covid-19, a França era o segundo país europeu com maior número de pedidos de asilo. Foram aproximadamente 178.000 em 2019. A líder do Rassemblement National (partido de Le Pen, Reunião Nacional em português) propõe “tratar os pedidos de asilo unicamente no exterior”. Que destino terão esses milhares de seres humanos fugindo do terror, se um país dessa dimensão lhes fechar as portas e enviar tal sinal aos demais no continente?

É o fim do próprio sentido do direito de asilo. A Convenção de 1951 do Estatuto de Refugiados recomenda aos governos do mundo “continuar a receber os refugiados em seu território e agir em concerto num verdadeiro espírito de solidariedade internacional, afim de que os refugiados possam encontrar um asilo e ter uma possibilidade de restabelecimento”.

A União Europeia incorporou esse princípio em seus tratados. Apesar de haver violações a esse princípio, mais de 700.000 pessoas pediram asilo no bloco em 2019, segundo dados compilados pelo parlamento europeu.

A extremista promete também abolir o direito de solo, o qual confere automaticamente a nacionalidade a todas as pessoas que nascem num dado território, independentemente da origem dos pais. Será francês apenas quem é filho de franceses.

Como Marine Le Pen pretende dar fim à “imigração descontrolada” sem, portanto, destruir os princípios constitucionais e engajamentos internacionais de seu país? Transformando a lei migratória em uma questão de vontade popular, via referendo. Uma proposta de tirania da maioria, para citar a formula de Tocqueville?

Para juristas como Dominique Rousseau, professor de Direito Constitucional na Sorbonne, o programa de Le Pen requer sair do Estado de Direito e da democracia. “O que Marine Le Pen propõe é uma espécie de golpe de Estado”, disse em entrevista ao portal Public Sénat.

Garantia de violência

A França conheceu uma alta de 41% no número de denúncias de uso desproporcional da força por parte da policia principalmente no período das manifestações dos coletes amarelos em 2018 e 2019, segundo reportagem da TV France Info. A violência policial é uma realidade, principalmente nas periferias das grandes cidades do país.

Segundo uma reportagem do jornal Libération, faltam estatísticas sobre as violências policiais. A publicação reuniu alguns levantamentos, como o da ONG Acat, que aponta 26 mortes decorrentes de operações policiais entre 2005 e 2015, sendo que 22 pertenciam a minorias. As vítimas “preferenciais” são magrebinas, negras ou moradoras de bairros pobres. Outro levantamento, do site Bastamag, fala num total de 746 mortes ao longo de 44 anos. No Brasil, mais de 6.400 pessoas foram mortas pela polícia só no ano de 2020.

Segundo dados obtidos por France Info em algumas regiões, o índice de punição varia entre 10% e 15%, enquanto em outras gira em torno de 40%. Mas segundo uma reportagem do Libération, na escala nacional, as sanções foram divididas por dez entre 2008 e 2018.

Diante desse cenário, Marine Le Pen propõe “instituir uma presunção de legítima defesa para a polícia”. Ou seja, garantir impunidade e institucionalizar de uma vez por todas a repressão racial e econômica pela força do Estado.

Ataque à liberdade de imprensa

A comunicação francesa é dividida entre um amplo sistema público e outro privado. O segundo está em expansão, com fusões e aquisições principalmente pelo magnata Vincent Bolloré. Ele comprou recentemente a rádio Europe 1, convertendo à extrema direita sua linha editorial.

Ele também é proprietário do canal Cnews, que dá grande espaço a vozes de extrema direita. É ali que o candidato de extrema direita derrotado Eric Zemmour tinha um programa de televisão, e por cujas declarações foi condenado por incitação ao ódio racial.

Permanece a comunicação pública, com canais de grande audiência como a TV France 2, cuja postura crítica incomoda Marine Le Pen e amedronta Macron, que recusou ser entrevistado nela às vésperas do primeiro turno. Mesmo se ambos querem acabar com o imposto de financiamento do serviço público de comunicação, há uma diferença fundamental.

A proposta de Marine Le Pen é privatizar a integralidade do serviço público. Não é difícil imaginar que Bolloré pudesse comprá-lo e o que faria com sua linha editorial. A comunicação de massa poderia se converter definitivamente num aparelho ideológico de extrema direita.

Marine já deu sinais de sua relação com o jornalismo. Nos últimos dias, questionada numa coletiva de imprensa sobre por que não credenciou jornalistas do programa satírico “Quotidien”, ela respondeu que não fazem jornalismo. “Você é quem decide quem faz jornalismo?”, perguntou um dos credenciados, do Libération. “Sim, estou na minha casa, no meu movimento, sou eu que decido. Credencio até meios hostis a mim, como o seu”, respondeu com um riso sádico e assustador.

Ameaça ao clima

Le Pen quer relativizar o engajamento ao Acordo de Paris, condicionando-o à vontade “nacional”. “A França responderá aos engajamentos do Acordo de Paris pelos meios que ela terá escolhido, no ritmo e conforme as etapas que ela terá decidido”.

“Ela faria a cada ano um balanço de sua trajetória de redução de carbono, em função das trajetórias dos outros países e da vontade dos franceses e sua qualidade de vida”. Isto é, garantir o conforto dos franceses é mais importante diante das consequências ambientais e humanitárias que as mudanças climáticas vão provocar.

A candidata de extrema direita promete inclusive desmantelar os parques de energia eólica. “Lançaremos um desmantelamento progressivo dos parques começando pelos que estão chegando ao fim da vida útil. Todos os subsídios destinados a promover esses procedimentos serão suspensos”.

Se para o Greenpeace, o governo Emmanuel Macron tem um resultado fraco ao longo de seus cinco anos de governo, Marine Le Pen é definida como “perigosa para o clima”.

“Todos os cenários críveis que permitem atingir a neutralidade em carbono no ano de 2050 mostram que é necessário acelerar fortemente o desenvolvimento de energias renováveis, principalmente eólicas”.

A ONG observa não se tratar apenas de um programa futuro. Ela observou como os deputados do partido lepenista votaram na Assembleia Nacional no último quinquênio.

“Eles e elas votaram unanimemente para autorizar novamente os neonicotinoides (pesticidas que matam abelhas). Sobre as condicionalidades ecológicas a auxílios públicos para grandes empresas durante a crise da Covid, os deputados e deputadas do Rassemblement National votaram sistematicamente contra”. A ONG observa que a presidente do partido não participou de nenhuma votação sobre o tema.

Descrédito da ciência

Marine Le Pen desacreditou a vacinação contra a Covid-19 em diversas ocasiões. Diante de um médico, disse que a vacina era perigosa para crianças. Em janeiro deste ano, ela afirmou na Assembleia Nacional que a vacinação não era eficaz coletivamente para impedir a circulação do vírus.

Ela se posicionou contra a exigência de passaporte sanitário para entrar em locais fechados, medida que para ela não passavam de uma “restrição” inútil. Reconhecendo que individualmente se vacinou, ela afirmou que não vacinaria suas filhas se fossem crianças.

Um estudo da fundação francesa Terra Nova lembra que Le Pen defendeu logo no início da pandemia o professor Didier Raoult e a “liberdade de prescrever” cloroquina contra o coronavírus, um remédio ineficaz.

Internacional conservadora

Não é à toa Marine Le Pen afirme que Trump teria gerido a pandemia melhor do que Emmanuel Macron, quando na verdade os Estados Unidos batiam recordes em número de mortos. Nem que ela defendesse a compra da vacina russa Sputnik V, quando esta nunca foi homologada pela União europeia. Sua posição é alinhada com a de Viktor Orbán, que usou vacinas de ambos e hoje, globalmente contra sanções à Rússia pela Guerra na Ucrânia, considera Zelesnky um inimigo.

Marine diz não querer adotar nenhuma medida que provoque o aumento das contas dos franceses. “É preciso dar a sensação de que ela pensa primeiro nos franceses”, disse uma fonte próxima a ela ao jornal Libération. No fundo, ela ainda deve milhões de euros do empréstimo que obteve em 2017 de um banco russo. A Rússia, cujo presidente Vladimir Putin a acolheu de braços abertos às vésperas das eleições, gesto interpretado no país como um apoio.

Uma militante do coletivo de esquerda “Ibiza” (sátira em relação a um escândalo envolvendo o atual ministro da Educação Jean-Michel Blanquer) se infiltrou na coletiva de imprensa de Le Pen nesta quarta-feira para denunciar a diplomacia Le Pen, levantando uma foto da candidata com Putin num papelão em forma de coração. Ela foi derrubada pelos seguranças de Le Pen, que arrancaram o cartaz das mãos da militante ecologista e a arrastaram até o corredor do prédio.

“O objetivo foi mostrar como Marine Le Pen é complacente com ditadores e foi por muito tempo aliada de Putin. Nesse meio entre os dois turnos, temos a impressão que as pessoas acham que Macron e Le Pen são a mesma coisa, que é ou o ultraliberalismo ou o racismo. Mas não, com Le Pen teremos o ultraliberalismo e o racismo”, explicou Pauline, a infiltrada.

Agora Le Pen terá de reembolsar também um empréstimo de um banco húngaro, país cujo primeiro-ministro ela é a primeira a louvar e a recusar-se a criticar sua estigmatização da população LGBT. “Eu acho que não se deve fazer a promoção de nenhuma sexualidade perante os menores”, disse, sobre a lei proposta por Orbán de proibir a “promoção da homossexualidade e da pedofilia” nas escolas.

Fogueira

A eleição de Marine Le Pen à presidência francesa pode reforçar uma ordem mundial que deliberada e sistematicamente lança à fogueira as populações mais vulneráveis do planeta, uma ordem de ditaduras fundada num ideal conservador e sobretudo racial. A tentação neofascista está às portas do poder. Votar em Emmanuel Macron não é mais uma questão de adesão, mas de evitar o terror. Não nos queimem.