Destaques

Matriz e filial: as implicações da invasão ao Capitólio no Brasil. Por Kakay

Apoiadores de Trump no Capitólio. (crédito: ALEX EDELMAN / AFP)

Publicado originalmente no site Poder360

POR ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO, o Kakay, advogado criminalista

“Bates-me e ameaças-me,

agora que levantei minha cabeça esclarecida e gritei:

‘Basta’!

Armas-me grades e queres crucificar-me

agora que rasguei a venda cor de rosa e gritei:

‘Basta’!

Esvazia-me os olhos e condena-me à escuridão eterna….

-que eu, mais do que nunca,

;dos limos da alma,

me erguerei lúcida, bramindo contra tudo:

Basta! Basta! Basta!”

Noémia de Sousa

O Brasil deixou há tempos de ser o país do futuro. Transitou brevemente como uma potência em ascensão e ancorou no presente como um país que tem sido pária internacional. Sem credibilidade, sem respeito, sem charme, sem crédito, sem voz. Passamos a ser motivo de chacota e de desprezo em praticamente todas as áreas. Com um presidente sociopata, corrupto, genocida e profundamente ignorante, rodeado por uma família medíocre e por milicianos, o país começou a fazer água depois de ficar à deriva.

Um dos pontos que acalentava o sonho brega desta família, que envergonha a todos nós que sabemos distinguir o que é ridículo, era a pretensa proximidade com o fascista laranja que ainda governa os EUA. Não confundir o laranja artificial do Trump com os laranjas que enriquecem e sustentam a família presidencial brasileira. Tudo me remete ao Poema Sujo, de Ferreira Gullar:

“Um rio não apodrece do mesmo modo que uma perna

– ainda que ambos fiquem

com a pele um tanto azulada-

nem do mesmo modo que um jardim.

E como nenhum rio apodrece

do mesmo modo que outro rio

Mesmo porque

para que outro rio

pudesse apodrecer como ele

e misturasse seu cheiro de rio

ao cheiro de carniça

e tivesse permanentemente a

sobrevoa-lo

uma nuvem de urubus.”

No dia 6 de janeiro, parte dos americanos do norte deram um grito de liberdade contra a supremacia branca. No Estado da Geórgia, tradicionalmente racista e supremacista, um candidato democrata negro, Raphael Warnock, fez história e derrotou a bilionária republicana Kelly Loeffler. E esta eleição, que dá a maioria aos democratas no Senado norte-americano, mandou um sinal para o grupo do futuro presidiário Trump. Este recado foi sentido em Washington D.C.. À tarde, um bando de supremacistas brancos invadiu o Capitólio e mostrou ao mundo o lado folclórico destes americanos de quinta categoria, incultos, dominadores, despreparados, opressores e prepotentes. A América profunda ocupou o Congresso.

Foi impagável ver o Congresso norte-americano ser tomado por um bando de arruaceiros, sem nenhuma qualificação. E o melhor foi ver os poderosos soldados e guardas americanos, acostumados a invadir Congressos mundo afora, serem humilhados por um bando de idiotas, convocados e insuflados por um Trump com viés bolsominion, sem propósito senão a baderna como bandeira de resistência. Patético. O Trump e o Bolsonaro se merecem. São ridículos. Leio Drummond no poema “A Mesa”:

“Como pode nossa festa

ser de um só que não de dois?

Os dois ora estais reunidos

numa aliança bem maior

que o simples elo da terra.

Estais juntos nesta mesa

de madeira mais de lei

que qualquer lei da república.

Estais acima de nós,

acima deste jantar

para o qual vos convocamos

por muito-enfim – vos queremos e, amando, nos iludirmos junto da mesa

Vazia.”

Mas é bom que tenhamos a dimensão do que aconteceu e não falemos em golpe, no sentido literal da palavra. De golpe os EUA entendem muito. Sabem exatamente o que é e como fazer. É nítido que foi um claro atentado à democracia. Um acinte, um escárnio. Foi um golpe na credibilidade de um governo em agonia. Um golpe no líder de extrema direita desmoralizado e a caminho do fim, mas longe de ser um golpe na estrutura do país. Por mais bizarro que sejam os Estados Unidos, aqueles desmiolados que invadiram o Capitólio não chegaram a representar qualquer risco de ruptura institucional. Foi trincado o verniz que mantinha uma fachada democrática para aqueles que acreditam em democracia norte-americana. Isto não significa que nosso atabalhoado presidente, nosso Trump de araque, não vá tentar dar um golpe no futuro para se manter no poder e livrar da prisão ele e seus familiares.

No momento em que o mundo, perplexo, aturdido, acompanhava o vexame pela mídia internacional, o governo brasileiro resolveu disputar, de maneira tupiniquim, um espaço no vexame. Em rede nacional, o general que ousa, em plena pandemia, ostentar o título de Ministro da Saúde tentou explicar o que estes acéfalos farão para assegurar ao brasileiro o direito de vacinar. O pronunciamento foi a cara do governo: pífio, desconectado, sem dar segurança de quando efetivamente começará e qual o programa que nos dará um norte na vacinação. Deviam ler Pessoa no Livro do Desassossego:

“E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos a verdade para lhe mentirmos. E quando nos causar angústia, paremos, para que o sofrimento nos não signifique nem perversamente prazer…”

O presidente genocida insiste que a melhor vacina é ser infectado e pegar o vírus para conseguir a imunidade de rebanho. Pouco importa para ele e seu bando quantos terão que morrer para isto. Afinal, vacina, máscara, lavar as mãos e outras precauções recomendadas pela ciência são coisas para boiolas e maricas. Se os 250 mil brasileiros que morreram, número  ainda subdimensionado, fossem atletas e machos como o servo do Trump, não teriam morrido.

Nesta semana, ao me referir à prisão da deputada britânica Margaret Ferrier, por ter viajado de trem entre Glasgow e Londres, estando infectada do vírus e tendo consciência disso, me questionei, num artigo chamado “Teje Preso”, por que o Brasil não toma nenhuma atitude digna em relação a este presidente genocida. Um presidente que cultua a morte, que despreza todas as regras da ciência, que nega a existência do vírus, que desdenha do uso da máscara afirmando que diminui a oxigenação no sangue e, pior, que usa o poder do cargo para fazer pregação pública contra a vacina. Ainda assim, o brasileiro assiste a tudo calado e inerte.

A quantidade de mortos, os hospitais superlotados, o cansaço dos agentes de saúde, esgotados e sem força, tudo ronda o nosso imaginário e nos alcança de forma acachapante. Sinto uma densa nuvem a nos envolver a todos, nuvem que ora nos   sufoca e tira a visão, ora parece nos embalar em um sopro de esperança. Não é possível que tanta dor, tanta angústia, tanto medo, não vão nos fazer ir além.

Se a necessidade de enfrentar este vírus que nos mata e este verme que nos governa não nos move, significa que a barbárie ganhou. Se a premência deste embate com destemor, seriedade científica, responsabilidade e determinação não nos levar a promover o impeachment deste fascista genocida, nós não teremos feito jus a uma sociedade minimamente solidária, justa e igual. Nós seremos cúmplices com estes que optaram pelo esgoto e pelo desprezo à dignidade.

O grito de liberdade contra a supremacia branca que saiu da Geórgia e o vexame que ecoou no Capitólio têm que ajudar a romper aqui os nossos grilhões. Nunca esperei nada destes americanos do norte, nem dos republicanos e tampouco dos democratas. Mas o ridículo deles me serve se aqui, ao meu lado, eu sentir o tremor que se faz presente nas pessoas quando saímos da opressão rumo à liberdade. Já passou da hora de levarmos o nosso país e a nós mesmos a sério. É se encontrar em Rainer Maria Rilke:

“Escuridão, minha origem,

amo-te mais que a chama

que é limitada,

porque só brilha

num círculo qualquer

fora do qual ninguém a conhece.

Mas a escuridão tudo abriga

figuras e chamas, animais e a mim,

e ela também retêm

seres e poderes.

E pode ser uma força grande

que perto de mim se expande.

Eu creio em noites.”

Diario do Centro do Mundo

Disqus Comments Loading...
Share
Published by
Diario do Centro do Mundo

Recent Posts

Ataque do PCC coloca agentes penais em alerta máximo em Rondônia

Uma tentativa de atentado a tiros contra um policial penal federal que trabalha na Penitenciária…

49 minutos ago

RS: veja onde pedir 2ª via de certidões perdidas nas enchentes

As vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul já podem pedir a segunda via…

1 hora ago

Enchentes no Rio Grande do Sul somam 155 mortos e 94 desaparecidos

As fortes chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul causaram ao menos 155 mortes,…

1 hora ago

Sabadão no DCM: Lula intensifica ações no RS e Leite vê governo paralelo

AO VIVO. Leandro Fortes e Pedro Zambarda fazem o giro de notícias. Entrevista com as…

2 horas ago

Anac libera Base Aérea de Canoas para voos comerciais

A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) liberou na sexta-feira (17) a operação de voos…

2 horas ago

Sobrinho de ex-presidente, Orestes Bolsonaro será julgado em SP por tentar matar ex e namorado

O empresário Orestes Bolsonaro Campos está prestes a enfrentar o júri popular na capital paulista,…

2 horas ago