Médica deixou carta denunciando dificuldade de conseguir oxigênio antes de morrer de covid-19

Atualizado em 20 de abril de 2021 às 21:11

Publicado originalmente no Cotidiano

Thedra Saucha nasceu no Rio de Janeiro e graduou-se pela Escuela Latinoamericana de Medicina (ELAM), em Cuba. Há alguns meses, ela e sua companheira, Ramonyele Martins, fixaram residência em Salto do Lontra (PR), município no qual Thedra prestava atendimento médico.

(Ao final confira a entrevista que fizemos com Ramonyele, que conta com detalhes o ocorrido com a Dra. Thedra Saucha).

Na última quarta-feira (14/04), em decorrência de complicações provocadas pela Covid-19, a Dra. Thedra faleceu. Durante sua luta contra a doença, a doutora enfrentou ainda uma série de dificuldades. Segundo relata Ramonyele, que esteve com Thedra durante todo o processo, alguns meses após o início do exercício de sua profissão na cidade, a médica passou a receber uma série de ameaças por parte do Secretário de Saúde do município, que exigia que a mesma cumprisse uma carga horária superior a firmada em seu contrato com a prefeitura. Como conta Thedra, em carta escrita poucos dias antes de sua segunda internação:

“Eu, Thedra Saucha,35 anos, médica pós graduada, sem nenhum processo judicial ou em meu conselho de classe que desabone o exercício da minha profissão, gostaria de tornar pública as perseguições que venho sofrendo por parte do secretario de Saúde do município de Salto do Lontra onde vim morar e trabalhar desde final de 2020. Que fique claro que meu título eleitoral é do RS, e a gestão passada é do mesmo lado que a atual.

Tinha com o município dois contratos, um credenciamento por chamamento público para plantões e outro de procedimentos/consultas PSF.

No início de fevereiro, o Sr. Valdecir me chamou à sua sala e me cobrou que eu cumprisse 40 horas semanais, sendo que o contrato assinado não exige horário. O mesmo afirmou que caso eu não me adequasse a ele (secretário), que em março o meu contrato seria cancelado. Continuei cumprindo única e exclusivamente o que constava no contrato que assinei. Em março o Sr. Valdecir me trocou de posto esperando que eu não me adaptasse e por conta sairia, não aconteceu, permaneci no posto novo”.

O secretário de Saúde não satisfeito, me tirou da escala de plantões do Pronto Socorro onde eu mantinha as terças-feiras noturnas fixas, e alguns plantões que fazia no Covid. Sem aviso, sem justificativa… meu nome apenas não estava mais nas escalas. Mas como existe um chamamento público na qual minha empresa está devidamente credenciada, outros colegas sem nem terem empresa estão fazendo plantões, mas a justiça e o Ministério Público já estão sabendo.

Além das ameaças e mudanças de seus locais de trabalho, Thedra ainda teve seu contrato rescindido. Mesmo estando internada e apresentando todos os atestados médicos necessários para justificar sua ausência.

No dia 19 de março testei positivo para o covid-19, dia 27 fui internada no hospital de Santa Izabel, todos os atestados foram protocolados devidamente na prefeitura. No dia 31 de março, o Sr. Valdecir publica um documento exigindo que eu forneça médico no prazo de 24 horas com rescisão contratual automática caso o prazo não seja cumprido. O pediatra do posto também ficou afastado devido ao covid-19, não repôs médico, nem teve seu contrato cancelado, mas a justiça e o Ministério Público estão sabendo.

Por fim, no dia 2, recebeu alta com prescrição de oxigênio em casa. Entretanto, quando solicitou recarga do oxigênio em sua casa, teve este direito negado — embora fosse procedimento padrão no município.

Recebi alta médica dia 2 do corrente, com prescrição de oxigênio em casa e repouso absoluto. Dia 4 solicitei ao pronto socorro que trouxessem oxigênio. Me foi dito que só após a meia noite pois não tinha quem levasse. Com medo e um torpedo pequeno apenas de oxigênio, solicitei à secretaria de saúde de Nova Prata, Sra. Vanda, que me emprestasse um cilindro. Na mesma hora me foi cedido. Logo percebi o que acontecia de fato no Salto do Lontra.

No dia 5 fui realizar a tomografia evolutiva, meus pulmões estão com 70% de comprometimento. A noite avisei ao Pronto Socorro sobre a troca do oxigênio pois não chegaria até as 2 da manhã. Fui orientada que o Sr. Valdecir, secretário de Saúde, NÃO autorizava e entrega de oxigênio à minha residência ( que fica há 5 minutos do PS), que eu teria que pegar com meus próprios meios. Fui, conectada a máscara de oxigênio, com um torpedo dentro do carro, eu e minha esposa aos prantos temendo pela minha vida, pois não temos família aqui, somos apenas eu e ela. Chegando ao PS por volta das 21 horas, 3 ambulâncias ociosas. Prontamente a equipe de plantão virou o banco do meu carro e alguns com lágrimas nos olhos diziam “ sinto muito dra.”.

Para saber os detalhes do caso, assista a entrevista de Romanyele Martins, companheira de Thedra Saucha.

Infelizmente, o que temos visto no Brasil é mais do que o descaso, a inação e o despreparo por parte de governos. O que tem ocorrido é uma ação coordenada de “deixar morrer”, política que tem resultado em centenas de milhares de pessoas pagando com suas próprias vidas.

Os exames que mostram o agravamento do quadro da Dra. Thedra:

Confira carta completa de Thedra Saucha:

Obs. A data da carta é 07/04/2020

A carta foi postada nas redes por Ramonyele Martins, esposa da Dra. Thedra Saucha.