Minha noite de flamenco em Granada

A dança invoca o poder da mulher de dobrar o mundo a seu favor.

A “bailaora” reivindica os olhares de todos

Descubro por canais muito exclusivos que a Universidade de Granada promove, até este final de semana, um festival de Flamenco na Corrala de Santiago, um prédio do século XVII que hoje funciona como alojamento para convidados da Instituição.

Chego com minha mulher 45 minutos antes da hora marcada e já encontro uma pequena fila de granadinos conversando alegremente.

Abrem-se as portas e ela se dirige instintivamente para a primeira fileira, onde os assentos não indicavam qualquer reserva. Um homem de meia idade, no entanto, a interrompe e adverte que tais lugares não poderiam ser ocupados.

Descobrimos, pouco depois, que por ser uma apresentação de jovens promessas do flamenco, os assentos estavam reservados para os pais, mães e avós.

Sobe-me certa revolta e eu penso em reclamar. Percebo, porém, rapidamente, que estou presenciando um evento único. Não se trata de um espetáculo comercial de flamenco, feito sob encomenda para os milhares de turistas que perambulam pela cidade.

Aquilo parece muito mais uma roda de samba perdida num passado remoto em algum terreiro recôndito de uma comunidade carioca. Uma celebração musical. Você não dita as regras. Obedece, sente-se agradecido e ponto.

E a velha guarda vai chegando gradativamente e ocupando os assentos. Mestres do flamenco, senhoras vestidas extravagantemente e homens maduros, alguns curtidos pelo álcool, que se conhecem há muitos anos e comportam-se como se estivessem no terraço de suas casas.

O espetáculo começa. O silêncio subitamente se instala. Um trio apresenta-se esta noite. Haverá baile.

O violonista introduz os primeiros acordes, oscilando rispidamente para um tom melancólico. Os instrumentistas flamencos não são suaves com seus instrumentos. Afinal, seu norte é a paixão, e esta exige uma batida brutal sem prescindir da precisão. Minha herança “joãogilbertiana” estremece.

Os guittaristas do flamenco não são suaves como João Gilberto

A “bailaora” entra. Reivindica os olhares de todos. Vestido azul, tamancos marrons e um xale amarelo finamente trabalhado. Simula uma cigana, uma mítica imagem andaluza.

Posiciona-se no tablado e acompanha a introdução da música com movimentos lentos. Conduz seu xale como se fosse um parceiro na dança. Dele se livra uma e outra vez só para envolver-se novamente pouco tempo depois.

A rotação dos pulsos acompanha os acordes do violão, e um ou outro “olé” de algum sacerdote flamenco ali perdido recepciona um passo que parece fundir-se com a música.

Aproxima-se dos instrumentistas e deixa cair o xale sobre uma cadeira. O violão marca um compasso diferente, por ela reforçado com o estalar dos dedos e as palmas do “cantaor”.

Já não há melodia, canto ou baile. Trata-se de um todo. Um jato de energia que atinge o público como um golpe de calor na frescura da noite.

A dança é poderosa. Invoca a irresistível determinação feminina. Esse poder da mulher de dobrar o mundo a seu favor.

O “cantaor” narra sua paixão pela cigana, convoca a Padroeira de Granada como testemunha.  Está a seus pés. E agora os tamancos da “bailaora” acompanham o violão como uma essência percussiva.

Subitamente, golpeando o tablado e seguida por uma batida rasgada do violão a jovem impõe um silêncio sepulcral no recinto.

Roda os pulsos sensualmente, enquanto levanta os braços como uma ave prestes a alçar vôo. Ergue a cabeça e fita algum ponto perdido na platéia. E passa a ditar um ritmo sem qualquer acompanhamento.

Impulsionada pelas palmas do “cantaor”, ergue-se suprema, olha desafiadora para os espectadores no primeiro andar do edifício e executa uma série de movimentos e giros que mergulham a platéia num êxtase.

O “cantaor” retorna suavemente introduzindo o desfecho e despede-se da cigana, enquanto a “bailaora” recolhe seu xale e retira-se, graciosa.

O espetáculo termina e a platéia, despertando da catarse, aplaude apenas por não ser possível carregar os três artistas nos braços pelas ruas do Realejo, este antigo bairro judeu de Granada.

Para mim, esta cidade, mais que qualquer outra, não pode ser devidamente compreendida sem a definitiva associação com o flamenco. É um traço cultural que a define tão completamente como o forró o faz com minha cidade natal, Campina Grande, e o samba com o Rio de Janeiro.

Não é à toa que Granada consolidou-se como a sede por excelência do “Cante Jondo” (canto profundo), uma primitiva e pagã forma de interpretar o flamenco como um lamento angustioso e confessional.

García Lorca, poeta granadino executado na Guerra Civil espanhola, o eternizaria definitivamente numa célebre conferência proferida em 1922 e no trabalho de 1931, “Poema del Cante Jondo”.

Pessoalmente, o espetáculo recém-concluído adquire uma dimensão quase transformadora. Em especial, a eloqüência desse suposto recato feminino no flamenco me soa quase insultante.

O grau de sensualidade e o poder hipnótico que uma mulher, vestida da cabeça aos pés, com uma expressão permanentemente severa e executando um baile austero, me faz pensar que se eu vivesse três vidas e meia ainda estaria engatinhando no universo feminino.

A tradição refere-se ao duende do flamenco. Uma emanação energética decorrente de uma comunhão perfeita entre a platéia e os intérpretes. Uma espécie de frenesi, um mergulho sensorial perfeitamente coordenado. Nada me pareceu mais real esta noite do que sua passagem mágica e vertiginosa pela Corrala de Santiago.

Hugo Gusmao

Hugo César Araújo de Gusmão é fotógrafo amador e leitor profissional, sobretudo de sci-fi. Atualmente mora em Granada, na Espanha, onde faz um pós-doutorado em Direito Constitucional.

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