Sinal dos tempos: MPF quer processar colegas por crime de hermenêutica. Por Lenio Streck

Atualizado em 27 de setembro de 2021 às 11:51
Sergio Moro é alvo de procuradores do MPF
Sergio Moro é alvo de procuradores do MPF. Foto: Agência Brasil

Publicado originalmente no ConJur:

Por Lenio Streck

Leio que os procuradores da república Emanuel Ferreira e Luiz de Camões Boaventura estão na alça de mira da Corregedoria do Ministério Público Federal. Contra eles foi aberto Inquérito Administrativo Disciplinar.

Explico, adiantando que meu ponto central será a impossibilidade de crime de hermenêutica, além de seus efeitos colaterais.

Os dois procuradores ingressaram com Ação Civil Pública contra a União por danos morais coletivos causados pela ação do juiz Sergio Moro (lato sensu, “lava jato”). Eles deixam claro na petição, entre outras coisas, os vários modos e momentos em que o ex-juiz atuou de modo parcial e inquisitivo, demonstrando interesse em influenciar indevidamente as eleições presidenciais de 2018.

O juiz federal indeferiu de plano a ação. Entre outras coisas, disse que não cabia uma ação para compelir às Instituições implementarem cursos e alterações de currículos para que os agentes (do MPF e PJ) passassem a evitar atitudes contra a Constituição. Ao tomar conhecimento, a Corregedora-Geral do MPF, Elizeta Ramos, mandou abrir o inquérito dizendo que “verificam-se sérios traços de infidelidade às atribuições institucionais”.

Em primeiro lugar, a Corregedora corre o risco de dar um tiro no pé. Se a moda pega, estar-se-á institucionalizando o crime de hermenêutica no âmbito do Ministério Público. Sabemos que desde 1897 o STF, em ação movida pelo Presidente (do RS) positivista Júlio de Castilhos contra o juiz Mendonça Lima, disse ser inviável essa “caça epistêmica”.

Duas questões se põem. Primeiro, a corregedora diz que cabe investigar os procuradores porque a inicial foi rejeitada. Bom, a bem da verdade, eu até gostaria de concordar com a doutora. Afinal, todos os dias vemos iniciais serem rejeitadas, que vão de ACPs a ações penais. Se em cada rejeição cabe investigar o autor-membro-do-MP, não teremos espaço para tantos processos administrativos (ou inquéritos). Eis os efeitos colaterais. A Caixa da Corregedora pode ser pior que a de Pandora.

Assim, acaso formado o precedente, estou com vários pedidos de investigações na agulha. Eu e centenas de causídicos. Recentemente um juiz rejeitou in limine uma ação contra… Ah, deixemos prá lá. Bom, por enquanto. Se a doutora Elizeta entender, mesmo, que uma rejeição de ação intentada pelo MPF dá azo à inquérito, vamos em frente. Depois não se queixe(m).

A segunda questão está imbricadíssima com o crime de hermenêutica. Parece evidente que nenhuma ação pode ser arbitrária. Sou suspeito para falar disso, porque fui o único quem reclamou do próprio MPF, em vários textos, do fato de terem deixado “transitar em julgado” a afirmativa do TRF-4 de que o MP não necessita ser isento. Aliás, basta ver o teor do projeto Anastasia-Streck que tramita no parlamento. Instituição republicana não pode agir estrategicamente; do contrário, não se trata de instituição republicana.

Para além de platitudes e obviedades, não parece haver dúvidas que os fatos postos pela dupla de procuradores são verdadeiros — até porque públicos e notórios. Mais do que isso, é fato jurídico, transitado em julgado — afinal, o STF declarou Moro suspeito (e nem precisou lançar mão das mensagens da Operação Spoofing). E por quais razões? Basta ver o acórdão da Suprema Corte. Veja-se: isso não é pouca coisa. O STF entendeu, implicitamente, que o artigo 254 admite também a parcialidade como motivo para anulação de processos, como já ocorre, de há muito, no Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Decisão do Supremo e o direito internacional não valem como direito nesse positivismo capenga-tupiniquim?

O juiz pode (assim como a corregedora do MPF) não concordar com os pedidos de instar a União, por meio da ENFAM e Escola MP, a fazer cursos. OK. Mas, convenhamos, não é absurdo exigir que, por exemplo, a instituição encarregada de ser a guardiã da Constituição (o MP) envide todos os esforços para que seus membros façam exatamente o que a CF diz. Porque, ao que se viu, na operação “lava jato” não foi bem o que ocorreu, conforme já decidido pelo STF. Você pode não concordar com o que foi decidido pelo STF. Mas, vai fazer o quê? Contempt of Court? Vai esbofetear o Rei Henry V, como mostra Shakespeare na peça Henry IV?

Por vezes as obviedades devem ser ditas…várias vezes. Darcy Ribeiro escreveu um Tratado de Obviedades para insistir nisso. O Tribunal Constitucional de Espanha chegou a dizer, em um acórdão logo após a Constituição de 1978, que os juízes deveriam interpretar as leis de acordo com… a Constituição. E não foi considerado absurdo dizer o óbvio. Ferrajoli ganhou notoriedade dizendo uma coisa evidente (e óbvia): que uma lei tem dois âmbitos — vigência e validade. E assim por diante.

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Vejamos. Se o fundamento — atuação de Moro e da própria força-tarefa do MPF — é hígido, a discussão passa ser o objeto pedido. Moro influenciou as eleições. Até as pedras hoje sabem disso. Além disso, não esqueçamos que Moro confessou que agiu à margem da lei aos divulgar os diálogos Lula-Dilma, pedindo sinceras escusas em mais de 30 laudas ao STF, “inaugurando”, caricatamente, uma nova forma de extinção da punibilidade.

Examinando os objetivos da ACP, um deles é o de buscar obrigações de fazer. Ora, as Escolas das Instituições são órgãos que lidam com dinheiro público. Têm caráter oficial. Então, por qual razão o cidadão não tem o direito de accountabillity acerca do conteúdo que está sendo ministrado? Como dizia o personagem Cons. Acácio, as consequências vêm sempre depois.

Estariam as Escolas blindadas aos fatores exógenos? Blindadas às cobranças? Agora mesmo o CNJ decidiu incluir matérias absolutamente discutíveis em concursos, como consequencialismo, passando-se a entender que uma lei ordinária como a LINDB tem o condão de dizer o conteúdo de escolas e concursos. E o que dizer de institucionalizar a Análise Econômica do Direito em um país como o nosso, com milhões de esgualepados? Esses atos estão blindados?

O Brasil tem de se acostumar com uma coisa chamada “República”. Por mais críticas que o juiz e a corregedora do MPF tenham à ACP proposta pela dupla de procuradores, nem de longe a rejeição da ação pode ensejar “infração ou crime de hermenêutica”. Podem não gostar da ACP; daí a acharem que cabe esse tipo de resposta arbitrária em âmbito institucional é outra coisa bem diferente.

Mormente em um assunto tão candente como o papel de um juiz que, com sua atuação parcial (e suspeita), alterou os rumos da própria história do país. “Brincássemos”, como exercício argumentativo e absolutamente hipotético, com “o efeito borboleta”, diríamos que tudo o que de ruim aconteceu com o país, em termos políticos-institucionais (há uma foto interessante do então juiz, em 2016, com a camisa de um clube com a publicidade da Prevent, mostrando como a história é repleta de ironias e coincidências) tem a ver com essa fenomenologia. Até tentativa de golpe houve. E jabuti não dá em árvore.

De todo modo, a Doutora Corregedora pode ter caído em uma armadilha. Vejamos:

a) se ela coloca como um dos fundamentos do Inquérito a rejeição da ACP;

b) e, assim, se o inquérito por ela proposto for arquivado-rejeitado,

c) então, pela mesma lógica, ter-se-á a subsunção de sua conduta no artigo 25 da Lei de Abuso.

Veja-se como são infindáveis os caminhos do direito. Sic transit gloria mundi.

Um inquérito contra si mesmo. Brilhante futuro do pretérito! Bingo!

Numa palavra final, sou suspeito para falar sobre ativismo judicial. Mantenho um laboratório epistêmico no qual testamos decisões para aplicar a fórmula da Crítica Hermenêutica do Direito que distingue o ativismo da judicialização. Não creio, sinceramente, que possamos, via Judiciário, trazer felicidade ou sabedoria para o povo. E nem colocar comida na mesa. E tampouco dar metade da herança para a amante. E nem alargar licença paternidade de pais de gêmeos para 180 dias.

Igualmente parece inviável pensar que as Escolas (Enfan e correlatas) venham a mudar seu imaginário por ordem judicial. Seria algo parecido com uma ordem judicial para que os professores de todo o país lessem Kelsen de cabo a rabo. Também é inviável exigir, “por ordem judicial”, que se pare de “sopesar” princípios — invocando Alexy — colocando um em cada mão fazendo gestos para a plateia.

Do mesmo modo, é impossível pensar em obrigar a que as bancas de concursos não façam perguntas sem respostas ou com gabarito errado, confundindo positivismo com qualquer coisa e pensando que realismo é pós-positivismo e que princípios são valores que cada um pode colar sobre as leis… E não conseguiremos impedir que os cursinhos logo, logo, ensinem “consequencialismo” em resuminhos.

Se cumprir a CF é um dever — e até mesmo uma atitude revolucionária — parece inútil em um país como o Brasil querer obrigar a quem tem a obrigação de cumprir a CF a que cumpra o seu dever de, exata e justamente, cumprir a Constituição.

Não esqueçamos que o STF já tentou humanizar os presídios com a declaração do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema medievo-prisional. Deu errado, como se viu. Nem o STF conseguiu. Logo…

De qualquer maneira, tenho poucas certezas. Uma delas é a de que não devemos imputar “crime de hermenêutica”. Fosse por isso, quantas faculdades ficariam funcionando? O resto o leitor completa…!

De todo modo, os dois procuradores podem ter errado “no padre”, mas, de algum modo, “acertaram em cheio a igreja”, se entendem o universo dos ditos populares.