O artista não é um fingidor

Atualizado em 28 de agosto de 2013 às 8:59

Sobre Van Gogh, Britten, a polêmica do Emicida, e sobre todos nós.

Não precisamos cortar nossas orelhas para apreciar Van Gogh
Não precisamos cortar nossas orelhas para apreciar Van Gogh

Gosto de um dos versos mais célebres de Fernando Pessoa. Aquele que diz que “o poeta é um fingidor – finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”.

Mencionei o poeta porque um comentário feito aqui no Diário sobre o caso do Emicida me pareceu um assunto interessante. O texto contava que o rapper havia sido acusado de machismo e de promover violência doméstica com a letra da música Trepadeira. A música, entre outras coisas, diz “dei todo amor, tratei como flor / mas no fim era uma trepadeira” e “merece era uma surra de espada de São Jorge / um chá de comigo ninguém pode.

O comentário foi uma resposta ao meu. Eu defendi o autor dos versos no meu comentário, e o leitor Fernando respondeu o seguinte:

“Bom, então os pastores e padres, que pregam que a homossexualidade é um pecado e uma abominação ou a relacionam a pedofilia, não tem nenhuma responsabilidade se fieis absorvam esse discurso de ódio e agridam ou matem gays. Basicamente o que tu defende é que os artistas não tem nenhuma responsabilidade social ou que a liberdade de expressão não tem limite, mesmo que seja uma difusora de opressão e discursos de ódio. Eu acho que só o machismo ululante da nossa sociedade justifica essa música bizarra do Emicida (que por sinal já reconheceu o caráter político do humor e criticou o racismo do Zorra Total no caso da Adelaide e não veio com essa desculpa esfarrapada de que a arte está em uma torre de marfim, intocável ou que brotou do espaço. Agora pra músicas machistas a arte tem essa “licença!?) ou esse texto em defesa dessa alienação da arte em relação a sociedade ou da política e do papel que ela desempenha nesses campos. Essa música só serve para legitimar a violência contra mulher e o policiamento do seu corpo e sexualidade. O Emicida disse que é uma resposta a música “Vacilão” em que ele fala sobre a infidelidade de um homem e como ele maltratava a mulher dele e que acabou ficando só por isso, mas como a Socialista Morena afirmou: na primeira música ele não faz nenhuma condenação moral sobre a sexualidade do homem ou afirma que o homem merece ser espancado com a “espada de são jorge”. Eu acho, no mínimo, uma postura irresponsável, conservadora e alienada, um artista que vive no 7o país que mais mata mulheres no mundo, fazer uma música que naturaliza a violência doméstica e reforça o machismo”.

Gostei da resposta, que abriu questionamentos interessantíssimos sobre os limites da arte. São colocações inteligentes, bem argumentadas e lógicas. Seriam perfeitas se não estivessem erradas.

o compositor e maestro inglês Benjamin Britten
o compositor e maestro inglês Benjamin Britten

Eu concordo com a visão de machismo, de sociedade, de responsabilidade que o Fernando colocou. O que ele não entendeu é a essência da discussão: o que é a arte?

Arte é exercício de sentimento. Como diz Fernando Pessoa, a dor é sentida de verdade, ainda que seja subjetiva ou mesmo que venha de uma persona.

Sentimento não se controla. Você sente o que sente. E o artista expressa.

Ele é tão bom quanto é capaz de expressar seus sentimentos, quais quer que sejam. Se o artista tem vontade de dar na sua namorada uma surra de espada de São Jorge, é isso que ele tem que dizer. É necessário que ele diga, se não ele não é artista, ele é político.

A arte vai no caminho contrário ao da política. É o exato oposto. Política é conciliação. É olhar na cara de George W. Bush, pensar “você é um filho da puta”, sorrir, cumprimentar e dizer que os países são amigos. Arte é cantar no Grammy, com Bush na plateia, “Bush é um filho da puta”. Considerando, claro, que é isso que você acha dele.

Daí, inclusive, minha maior crítica ao Pablo Capilé e ao Fora do Eixo, que mistura as duas coisas. Para mim, isso cerceia a criatividade e limita a arte.

Roberto Carlos: artista em certos momentos, político em outros
Roberto Carlos: artista em certos momentos, político em outros

Veja Roberto Carlos, por exemplo. Foi artista ao escrever Detalhes. Foi político ao escrever a música das gordinhas.

Aí a gente volta à fala do Fernando. “Pastor não tem responsabilidade sobre o que fala?” Tem, claro. Mas pastor não é artista. O pastor, em primeiro lugar, fala em nome de um terceiro (Deus). Em segundo, ele pede que os fiéis acatem o que ele diz. O artista fala em seu nome e não pede que o ouvinte acate, ou concorde. Sequer pede que compreenda. Ele só fala (e quando eu digo “fala”, não quer dizer literalmente. Ele pode falar num quadro, numa escultura, numa dança numa melodia).

“Você defende que o artista não tem nenhuma responsabilidade social”. Não exatamente. Na verdade, defendo que o artista não tem nenhuma diferente de todas as pessoas. Crime é crime para qualquer um. Mas sim, ele não tem nenhuma a mais por ser artista.

Não é que o artista pode falar o que quer. É que, idealmente, ele tem que falar o que sente. E sofre as consequências, como a pessoa comum que ele é, não com um rigor especial para artistas.

Aí entra o que talvez seja o erro mais comum e interessante na interpretação da arte: arte não divulga. Arte só expressa. A divulgação é da mídia, dos fãs, do agente, e eventualmente do próprio artista, mas aí já trabalhando numa outra coisa, e não na arte. A responsabilidade sobre a divulgação da ideia é do meio. Da estação de rádio, por exemplo, ou do site que coloca no ar, ou do fã que indica a um amigo. Porque o artista, ou pelo menos o artista ideal, o artista puro, apenas fala “eu sinto isso”. E você faz o que quiser com essa informação. Quem fala “ouça isso” é uma outra pessoa. Rádio, site, fã, etc.

Pense em Vincent Van Gogh. Toda a sua tristeza, aflição, dor, frustração está expressa naqueles quadros. Até nos Girassóis (que é uma coisa absolutamente diferente quando você vê de perto, aliás). Isso não quer dizer que você tenha que sentir o mesmo.

Agora vamos por um outro caminho. Pense em Benjamin Britten. Quem disse que toda aquela harmonia dissonante e ritmo estranho não significa “ódio, ódio, ódio”? Apenas ele usa outra ferramenta de expressão – um piano, uma orquestra – que não tem palavras e, assim, não pode ser interpretado de forma tão literal quanto os críticos do Emicida.

Não existe arte certa ou errada. Existe arte melhor ou pior, e geralmente a melhor está diretamente ligada à comunicação de emoções genuínas. Dizer que um artista tem que ser julgado de forma diferente por possuir um microfone é negar o básico: somos todos iguais.