O cheiro da grama molhada

Atualizado em 18 de janeiro de 2011 às 9:04
Quando éramos reis

Você realmente era habilidoso, jogava muito bem, mas acho que as duas semelhanças entre você e o Rivellino foram ter jogado futebol de salão no Banespa e serem canhotos. Basta. Esquece o resto.Em nosso tempo de moleque vi e joguei com grandes meias-esquerdas. Você sem dúvida foi um deles. O Foca do Santo Amaro, que anos mais tarde se transformou no Vianna do SPFC, foi outro. Saudade dos bons tempos do Dente de Leite e das amizades que atravessam os anos. Se sua filha continuar duvidando de que você era um bom jogador pede para ela ler este texto. Sou testemunha viva de que você com a 10 as costas tinha um potencial incrível se continuasse a trilhar o caminho do futebol.

“Você gosta de receber cartas de seus amigos, não é papai?”

Este foi o comentário de Camila depois que ela percebeu minha reação diante da carta acima, que li em voz alta para ela.

Camila simplesmente não acreditava que um dia o pai calçou chuteiras. Não sei se gostei tanto de qualquer outra coisa como de jogar futebol.

Sinceramente.

Meu sonho de seguir carreira terminou quando meu fêmur direito se deslocou, aos 15 anos. Excesso de futebol? Talvez. Eu jogava salão e campo a sério desde os 12. Entre treinos e jogos, eu estava na quadra ou no campo todos os dias, exceto segunda. Jogos, treinos físicos e técnicos.

Loirinho de cabelos quase brancos naturais, não fajutamente tingidos como os de Assange.  Foi assim que apareci num álbum de figurinhas do Dente de Leite, torneio que a Tupi transmitiu nas tardes de sábado em 1969 e 1970.  Os jogos eram na Comendador Souza, o estádio do Nacional. Anos depois, já adulto, fui ao estádio de minha menine em busca sei lá do quê. De mim mesmo, provavelmente. Eu era canhoto. Minha perna direita, como uma vez disse o técnico Pereira a meu pai, só servia para subir no bonde.

Meu sofrimento aos 15 por ter que parar foi do tamanho do sonho de ser jogador. Durante um bom tempo eu simplesmente não conseguia ver um jogo na televisão.

Eu me via no campo e em seguida lembrava que estava liquidado aos 15. Em vez de chuteira eu agora usava uma muleta. Como alguém poderia dizer que existe Deus?

Mateus me devolveu aos tempos em que usava a 10 no campo e a 8 na quadra, sob as vistas de minha platéia particular – meu pai. Papai não perdeu um único jogo meu.

Mateus era um goleiro elástico. Parecia feito para voar no arco, com defesas acrobáticas. Tinha o sorriso puro e aberto de quem está bem com a vida, não importam muito as circunstâncias materiais. Na última vez que o vi,  há pouco mais 10 anos, na redação da Exame, onde alegrou meu dia com uma visita, conservava o sorriso. Fazia uma bonita carreira no mundo corporativo longe dos arcos que dominou menino, a camisa 1 trocada pelo paletó e gravata.

Mateus chegou ao Banespa com uma leva de garotos da região de Santo Amaro. Entre eles estava Barbosa, o Jacaré, camisa 5 do time, um volante voluntarioso, baixo e forte. Seus traçoa logo mostravam a razão do apelido de Jacaré. Foi nossa primeira baixa. Morreu num acidente de carro ainda jovem.

Daqueles tempos, mantive contato com Paulo Sérgio, o Banus, ou Vilela, meu grande amigo do Previdência. E também com Laselva, Onófrio Laselva, da livraria, com quem fiz dupla de meio campo. Laselva, classe média alta, um volante clássico, olhos nunca para a bola, sempre para cima, dificilmente se submeteria aos rigores da carreira profissional de jogador. Foi o que aconteceu. O mesmo destino teve Paulo Edgard Fiamenghi, o Paulinho, canhoto como eu. Sua família estava muito bem de vida para que Paulinho sacrificasse a vida ao futebol. (Uma vez, revi Paulinho. Tínhamos os dois então pouco menos de 30 e não nos víamos desde os 14. Pensei na hora: putz, como ele tá velho!)

Com Paulo Sérgio, ponta esquerda do time, a história foi diferente.

Paulo Sérgio foi do Banespa para o São Paulo, onde jogou algum tempo com Murici, então um meia direita no qual o São Paulo apostava muito. (Enfrentei Murici no campo e no salão, onde ele defendia o AABB com uma carteira de identidade falsificada para ele passar por mirim. Era Maurici naqueles dias.) Paulo Sérgio desistiu do futebol quando, emprestado para um time do interior, enfrentou um lateral salubérrimo do Guarani, um cavalo pela força e não pela violência.

A descrição daquele jogo por Paulo Sérgio foi uma das coisas mais divertidas que ouvi na vida. Dava para ver o lateral dando voltas em torno de Paulo Sérgio. A torcida interiorana não achou tão divertido. Vaiou a aquisição do time logo na estréia. No dia seguinte ele pegou um ônibus e voltou para a capital, disposto a encontrar uma nova ocupação.

Banus é um dos meus ídolos, um filósofo inspirador pelo exemplo de contentamento na vida simples.

O Foca de que fala Mateus foi adiante. Jogou pelo São Paulo nos profissionais. Mas com o nome trocado para Vianna jamais foi sombra do grande Foca do Santo Amaro, que parecia capaz de fazer qualquer coisa com a perna esquerda, uma mistura de Gérson e Rivellino.

Como um nome pode fazer diferença.

Paulo Sérgio, há muitos anos no Rio, onde Deus deve protegê-lo das balas perdidas e das enchentes, virou depois um excelente quarto zagueiro da várzea. Assim, precisava ter menos velocidade, e ao mesmo tempo não corria o risco de encontrar outra vez a marcação daquele lateral do Guarani. “Não consigo imaginar você sem o futebol”, ele me disse um dia quando contei que estava jogando tênis.

Não deixei o futebol. Foi o futebol que me deixou.

Paulo Sérgio é hoje um grande vendedor de carros, e alegra com sua simpatia genuína, honesta, competente os clientes da concessionária Honda para a qual empresta seu talento e carisma.

Foi bom receber a carta de Mateus. Não apenas porque comprovou para Camila que o pai jogou bola. Mas por ter me devolvido aos dias em que a vida era bem menos complexa e o cheiro da grama molhada de um campo de futebol parecia me levar ao paraíso.