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‘O mais ruim’: o que o ato falho revela sobre a mente de Bolsonaro. Por Lucio Artioli

Publicado no blog Entendendo Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro. (Foto: Alan Santos/PR)

POR LUCIO ARTIOLI DOS SANTOS

No final de maio, durante a posse simbólica de Gilson Machado Neto como presidente da Embratur, o presidente Jair Bolsonaro discursou em defesa de medidas do seu governo, como a reforma da Previdência, além de iniciativas da área de infraestrutura.

O discurso, contudo, foi marcado por um ato falho cometido pelo capitão reformado, numa fala que pretendo analisar ao longo deste texto.

Disse ele, na ocasião:

“Quantos aqui votaram em mim, até eu sendo o mais ruim! O menos ruim, melhor dizendo…”.

O mais característico do ato falho é a surpresa provocada nos ouvintes e na própria pessoa que acabou de dizê-lo, devido ao significado, muitas vezes considerado absurdo, que o lapso de linguagem traz à tona.

No vídeo, amplamente divulgado no Twitter, em que Bolsonaro é atravessado pelo inconsciente enquanto discursa, testemunhamos essa surpresa na reação do homem que está à frente na plateia. Ele levanta a cabeça e demonstra sua perplexidade no exato momento em que escuta o lapso do presidente.

Logo em seguida, ocorre o que há de mais frequente após uma manifestação do inconsciente: entra em ação o recalque. Também conhecido como repressão, o recalque é a tarefa realizada pelo palestrante para tentar apagar o que acabou de dizer.

Existem muitas maneiras de fazê-lo. Por exemplo, a pessoa pode alegar que não queria falar o que disse e, na verdade, teremos que lhe dar razão: o que ela acabou de dizer foi algo além da sua vontade consciente. Por esse motivo, Freud supôs a existência do inconsciente.

Essa suposição é o que nos permite retorquir uma alegação desse tipo dizendo para a pessoa que cometeu o ato falho: ‘você não queria dizer isso, mas foi o que você disse’.

Bolsonaro opta por outro estilo de repressão – um recurso muito comum, aliás – diante de seu lapso: trata o que acabou de dizer como se fosse um engano, um erro, corrigindo-o em seguida para dar continuidade ao seu discurso.
Caso estivesse em análise, a continuidade de seu discurso poderia ser tranquilamente interrompida para que ele pudesse trabalhar sobre o significado do que acabou de dizer.

O trabalho prometeria ser promissor, porque não é coisa sem importância o que Bolsonaro disse nesta ocasião. Quando ele se refere a si próprio como ‘o mais ruim’, emerge do inconsciente o infantil – um representante analfabeto da pulsão que o habita (e que habita cada um de nós quando o inconsciente se manifesta).

Afinal, existe algo mais infantil para um adulto do que dizer ‘o mais ruim’ em vez de dizer ‘o pior’? Levando em consideração a maneira como ele corrige seu lapso, isto é, encerrando o assunto com um ‘melhor dizendo’, poderíamos logicamente supor que suas palavras anteriores – ‘o mais ruim’ – são um mal dizer, um dito ruim, um mal-dito?

Em caso afirmativo, poderíamos concluir que “ser ‘o mais ruim”‘ é a maldição de Bolsonaro. Além das ressonâncias que essa palavra possui no campo místico-religioso da experiência humana, esse lapso talvez seja sua maldição porque pode se referir a algo que não foi suficientemente elaborado com palavras por ele a ponto de se tornar um ‘bem dizer’ em algum dia.

Caso esse lapso fosse ‘bem-dito’, poderia Bolsonaro chegar à conclusão de que “ser ‘o mais ruim”‘ é uma fantasia impossível de alcançar, uma forma imaginária de colocar seu ser acima do ser dos outros em relação a alguma coisa – mesmo que essa coisa seja o pior – e, por fim, a representação solitária de uma posição de isolamento no mundo?

É possível que a condução dos raciocínios nesse sentido provocasse nele uma ferida narcísica, mais ou menos nestes moldes: ‘não sou tão ruim assim quanto eu penso que sou’. No melhor dos casos, seus pensamentos poderiam prosseguir para algo como: ‘mais ruim, menos ruim… porque insisto tanto, não importa a medida, em ser ruim?’

Reconheço que, na realidade, estamos distantes de um acontecimento como esse na vida de Bolsonaro. Por outro lado, hoje, a maioria de nós pode facilmente trilhar o caminho descoberto por Freud e reconhecer no ato falho de qualquer um a revelação de algo que desejava permanecer oculto.

*Lucio Artioli dos Santos é psicanalista membro do Instituto Tempos Modernos. Integra a coordenação da ONG Projeto Girassol, que oferece atendimento psicológico gratuito para alunos de escolas municipais. Atende em consultório particular no Rio de Janeiro e em São Paulo.

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