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O recado de MC Carol e Karol Conká no dia seguinte ao discurso de Marcela Temer. Por Cidinha da Silva

Karol Conká e MC Carol

 

No dia seguinte ao primeiro discurso de Marcela Temer, esdrúxulo, extemporâneo e insinuante para agradar a decrépita platéia masculina do Planalto, MC Carol e Karol Conká quebraram tudo com o single “100% Feminista”.

Enquanto Marcela se propunha a cuidar das criancinhas e a ensinar às mulheres como fazê-lo, numa versão démodé da Rainha dos Baixinhos, MC Carol conta e canta que aos cinco anos já presenciava mulheres de sua família serem espancadas por não terem cozinhado a tempo para servir aos machos.

Marcela Temer encarnou a insinuante do lar que podia a qualquer momento gemer o “ilariê” do Xou da Xuxa. MC Carol, séria e convicta, denunciou a opressão e o silenciamento das mulheres agredidas, ao tempo em que trovejou a decisão precoce de crescer (não sucumbir) e ser diferente do que estava desenhado para sua vida.

A menina que Carol foi não esperaria pelos cuidados da Rainha dos Baixinhos ressuscitada. Ela mesma agenciaria a própria vida, ainda que internamente, na determinação de não ser mais uma a apanhar.

E Carol cresceu. Muito prazer, ela é Carol Bandida, a dona da porra toda. E desfila na canção o nome de mulheres negras guerreiras que não são recatadas e do lar. São quilombolas, faveladas, escritoras, libertas, artistas, familiares das duas MCs, também guerreiras, e ainda Frida Khalo.

É o feminismo preto da mulher que inventa sua própria liberdade enfrentando o vaticínio que poderia torná-la mais do mesmo, não uma MC, uma cantora empoderada, mas uma jovem que reproduzisse o destino das que a antecederam na família.

Um dos pontos altos da música é assumir que a mulher negra pode ser frágil e que a fragilidade circunstancial não diminui sua força. O dueto é pesado, como a própria letra anuncia, mas a vida das mulheres negras pode ser mais leve, fluida e generosa para cuidarem de si mesmas.

Karol Conká imprime um tom mais reflexivo e coletivo à letra, talvez atravessado por leituras como a da ativista caribenha Audre Lorde que alertava às lésbicas negras sobre a incapacidade de o silêncio protegê-las dos ataques  da opressão de gênero, raça e sexualidade. Um alerta válido para todas as mulheres negras, de distintas orientações sexuais. “Desde pequenas aprendemos que silencio não soluciona / Que a revolta vem à tona pois a justiça não funciona /  Me ensinaram que éramos insuficiente / Discordei, pra ser ouvida o grito tem que ser potente”.

O segredo de “100% Feminista” está na legitimidade e representatividade das vozes de Carol Bandida e Karol Conká. No quanto os ouvidos que as ouvem anseiam por essas vozes de dentro da favela, que conhecem no miúdo a vida das mulheres negras que batalham pela vida enfrentando o racismo e o sexismo, sem máscara e sem verniz. Na tora. Por isso provocam comoção ao gritar que são 100% feministas.

A letra da música é muito simples. O poder está na voz de quem canta e nos tiros vindos da garganta.

Cidinha Silva

Cidinha da Silva, mineira de Belo Horizonte, é escritora. Autora de "Racismo no Brasil e afetos correlatos" (2013) e "Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil" (2014), entre outros.

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Cidinha Silva

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