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O voto dos desesperados. Por Gilberto Maringoni

Recém-eleito presidente da Argentina, Javier Milei. (Foto: Reprodução)

A onda chegou à Argentina. Um bufão, cujo programa máximo implica demolir, serrar, vender ou jogar fora pedaços do Estado nacional, é o novo fenômeno eleitoral do Sul global. Javier Milei tornou-se a válvula de escape para uma população exaurida por anos de sobressaltos econômicos sem fim.

Sua eleição representa uma derrota histórica para a democracia do país, exatos quarenta anos após o fim da ditadura militar (1976-83). Para as camadas populares é a combinação de ilusão e tragédia. E trata-se de revés estratégico para os setores progressistas da América Latina.

O personagem eternamente descabelado e dado a rompantes de escândalo representa o desencanto transformado em poderosa força política. Uma espécie de fascismo pop, ora fantasiado de Batman, ora revelando manter conversas mediúnicas com Conan, cão de estimação morto em 2017. O duce da motosserra é apelidado de “libertário” por uma mídia complacente, numa vaga alusão aos rebeldes franceses de 1968, que à época mereciam o mesmo qualificativo. A coreografia catártica da nova extrema-direita é a da rebelião contra “as castas”, “a mentira” e “os políticos”, prometendo terra arrasada como solução de todas as crises e passaporte para a prosperidade.

Pregação ultraliberal

Quando se elegeu deputado federal pela província de Buenos Aires em 2021, Javier Milei era pouco mais que um ilustre desconhecido do grande público. A partir de uma incendiária pregação ultraliberal, irrompeu na cena nacional a partir das Paso (eleições Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias), realizadas em 13 de agosto último. A partir daí tomou gosto por declarações feitas medida para chocar o eleitorado, colocar adversários na defensiva e lacrar nas redes sociais e na mídia. À dolarização da economia, a demolição do Banco Central, a extinção da maioria dos ministérios, entre outras bizarrices, somaram-se petardos ao Papa Francisco: “imbecil que defende a justiça social”, “representante maligno” e “apoiador de ditaduras sanguinárias”.

Desde então, não faltaram comparações com o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Há pontos de contato e há diferenças notáveis entre ambos. A mais significativa, talvez, esteja no fato de Milei até aqui não comandar uma onda reacionária tão enraizada socialmente, a exemplo do ex-capitão.

Vamos lembrar. Bolsonaro conquistou uma base congressual significativa em 2018, expressão de uma virada moralista-conservadora inédita na história da República. Sólidos apoios em setores empresariais – em especial no varejo – e evangélicos (que alcançam 31% da população brasileira) garantiram legitimidade social ao governo mesmo nos piores momentos da pandemia.

Na Argentina, por sua vez, os correligionários do recém-eleito no Congresso representam menos de 15% do total. Entre os 257 assentos na Câmara, sua coligação Liberdade Avança obteve apenas 35 cadeiras. Entre os 72 senadores, a proporção se repete: são 8 os representantes da aliança, que não elegeu nenhum governador nas 23 províncias.

É claro que o jogo político cotidiano e a capacidade de atração do poder Executivo tende a alterar tais proporções. Mas é importante observar que Milei não transferiu votos ou abalou as lideranças dos partidos tradicionais em suas bases. Até aqui, ele aparenta representar mais um fenômeno individual – no segundo turno perdeu apenas em três províncias – do que uma tendência consolidada. Vale ressaltar: enquanto ainda não adentrou a Casa Rosada e não se valeu dos poderes de Estado.

Para compreender o fenômeno Milei é necessário examinar o terreno no qual cresceu e quais foram os fertilizantes de sua arrancada.

Impulsionado pela crise

Milei é produto do caos produzido pela crise inflacionária e descontrole cambial, aliado à impotência oficial para realizar intervenções em uma economia endividada em dólar e com sérias dificuldades de acesso ao mercado internacional de crédito, desde a moratória de parte de sua dívida externa, em 2005. No último 12 de outubro, o Banco Central elevou a taxa de juros de 118% para 133% ao ano. Com uma inflação anual de 138,3%, a taxa real alcança pouco mais de 5%. Na raiz das turbulências, entre outras causas, estão as condições draconianas impostas pelo FMI para conceder um empréstimo de US$ 57 bilhões, o maior da história da instituição, em 2018, penúltimo ano da gestão Macri.

A Argentina jamais obteve uma recuperação consistente após a crise de 2008. A essa situação somam-se a queda dos preços das commodities entre 2013-16 e a forte oscilação do PIB durante a pandemia. No ano passado, o PIB cresceu 5,2% e os indicadores de emprego ficaram abaixo dos 10%. Trata-se, contudo, de um crescimento com concentração de renda. Cerca de 40% da população vive abaixo da linha de pobreza, enfrentando alta precarização laboral e perda de direitos sociais. A falta de perspectivas espalha-se entre a juventude. Em outubro de 2021, uma pesquisa realizada pela Universidade Argentina da Empresa (UADE) constatou que 75% dos argentinos entre 16 e 24 anos desejava sair do país.

O país depende quase exclusivamente das exportações para internalizar dólares necessários ao equilíbrio de suas contas. É um problema que dificilmente Milei poderá resolver no médio prazo. Sem moeda forte disponível, a proposta de dolarização só será factível com uma megadesvalorização do peso, retirada de todos os subsídios da economia – o que pode quintuplicar os preços de energia elétrica, por exemplo –, forte arrocho salarial e aumento do desemprego. São medidas factíveis com uso de forte repressão.

Decorrências para o Brasil

De imediato, vale a pena examinar as principais decorrências para o Brasil. O Mercosul, que enfrenta profundas divergências internas – como a perspectiva do acordo com a União Europeia capitaneado pelo Brasil e as tratativas isoladas entre o Uruguai e a China – corre o risco de ser interrompido. Outros organismos de integração regional, a exemplo da Unasul (União das Nações Sulamericanas) e da Celac (Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos) devem se enfraquecer. Ainda é cedo para falar das relações comerciais. Além disso, a extrema-direita global volta a ter uma base institucional forte no continente.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva. (Foto: Reprodução)

O resultado das urnas do outro lado do rio da Prata deve acender uma luz amarela no governo Lula. Eleito numa jornada memorável contra a extrema-direita, a administração empossada em 1º. de janeiro decidiu tocar burocraticamente a vida, como se não vivêssemos em tempos excepcionais interna e externamente. Políticas de contemporização em todas as áreas – militar, diplomática e parlamentar em especial – e a adoção de um duro arcabouço fiscal que provocará contração do investimento público, com planos de cortes nos pisos constitucionais de saúde e educação, privatizações a granel via parcerias público-privadas e contração fiscal que possivelmente provocará uma recessão em 2024 arrisca corroer os índices de aprovação popular do governo. O país vive um interminável ajuste fiscal desde o início do primeiro mandato de Dilma Rousseff, em 2011, cuja consequência tem sido medíocres taxas de crescimento econômico.

A rota do ajuste interminável é semelhante à seguida por Alberto Fernández. Embora Brasil e Argentina vivam realidades distintas e a economia brasileira seja muito maior, uma contração nos próximos anos pode trazer resultados políticos preocupantes. Em especial se lembrarmos que a extrema-direita brasileira segue ativa nas Forças Armadas, no Congresso e nos governos dos seis estados do Sudeste, que somam 68% do PIB nacional. Embora derrotado eleitoralmente, o neofascismo pátrio segue ativo politicamente. Um perigo para 2026.

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Gilberto Maringoni

Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da UFABC e candidato do PSOL ao governo de São Paulo, em 2014

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