“Pintou um clima? Pintou um crime”: ato em defesa de venezuelanas encontra motociata bolsonarista

Atualizado em 22 de outubro de 2022 às 23:13
Ato em defesa das venezuelanas (Fotos: Sara Penélope)

Por devana babu, de Brasília 

A comunidade de São Sebastião, no DF, abrigou neste sábado (22/10) um ato em repúdio às falas do presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre meninas venezuelanas residentes na cidade. 

Com o mote “Pintou um clima? Pintou um crime”, o protesto chama atenção para o caráter da declaração do ex-capitão dirigida a garotas de 14, 15 anos que ele encontrou no bairro Morro da Cruz. Nos bastidores, comenta-se que a organização sofreu algumas ameaças e intimidações de pessoas ligadas ao governo para impedir a realização do protesto.

Tais insinuações já foram amplamente desmentidas, mas seus ecos ainda atingem a vida da comunidade de refugiados venezuelanos.

Cerca de cem pessoas, vestidas de branco, com faixas, cartazes e plaquinhas representando flores amarelas nas mãos, se concentraram em frente ao Centro de Ensino Médio 01 de São Sebastião (Centrão), a partir das 16h, e saíram em uma caminhada até o Skate Park, no barro contíguo. 

Uma pequena carreata também acompanhou o cortejo. A passeata, embora convocada com caráter apartidário, contou majoritariamente com um público lulista e petista, grande parte com bandeiras e adesivos de apoio ao candidato à presidência.

No meio do caminho, os manifestantes, que estavam na calçada nesse momento, se encontraram com uma motociata de bolsonaristas na avenida. 

O “embate” não passou disso: pessoas fazendo “L” de um lado e gritando “Lula”, outros de verde a amarelo agitando bandeiras do Brasil e gritando “Bolsonaro”. Não houve qualquer incidente e os atos seguiram adiante. 

Para o deputado Gabriel Magno, do PT, eleito para o próximo mandato, e que esteve presente no ato, o encontro não foi mera coincidência. “Esse ato foi importante, primeiro, porque precisou muita coragem para fazer. A gente viu que, durante essa semana, o governo Bolsonaro operou e usou instrumentos do próprio estado para tentar impedir a realização do ato, com ameaça, coação às mulheres e aos movimentos sociais. Hoje mesmo a gente viu uma tentativa de intimidação do ato, com a motociata [dos bolsonaristas] tentando calar a voz de quem tá na rua, e tá muito indignado, porque o que o bolsonaro fez foi um crime”, declara Magno. 

Manifestante em defesa das meninas venezuelanas carrega flor amarela contra o abuso

“O ato mostra que tem resistência na cidade, que tem organização social, e que a rede intersetorial (que reúne instituições da cidade) é fundamental nesse processo. Acho que o recado foi dado: Não toleramos mais um governo que desrespeita tanto a população, o povo, as crianças, as mulheres e o direito de todo mundo”, afirma.

“Nós vimos, no Congresso Nacional, um movimento da base bolsonarista que é um ataque ao povo brasileiro, que é a tentativa de não deixar votar o projeto que torna a pedofilia crime hediondo [PL 1776/15]. Eles, que se dizem tanto defensores da família e das crianças, são quem opera para atacar os direitos das crianças.”

Articulação dos movimentos sociais em São Sebastião

O ato foi puxado pelas organizações sociais Nação Zumbi, Casa de Paulo Freire e Supernova, e contou com diversas lideranças locais de diferentes áreas e instituições, além de representatividades políticas do PT, como a ex-candidata ao senado Rosilene Corrêa. 

O tom geral das falas foi de combate à fragilização dos direitos das crianças, dos adolescentes e das mulheres; o estigma gerado na comunidade por essas falas; e o fortalecimento da rede de apoio e enaltecimento da organização da própria cidade e atuação dela neste e em outros casos. 

A fotógrafa e produtura cultural Nanah Farias leu, ainda, uma carta de repúdio assinada pelo movimento. Vale ressaltar que o corpo da manifestação era formado, majoritariamente, por mulheres, entre apoiadores e lideranças, que dominaram também a palavra ao microfone. Por outro lado, o ato não contou com a presença de membros da comunidade venezuelana da cidade. 

“Chegamos a esboçar um convite, mas ficamos preocupados pelo fato de eles já estarem sendo muito perseguidos”, afirmou a educadora popular Silvania Gomes, coordenadora do Centro de Formação e Cultura Nação Zumbi e uma das principais organizadoras do ato.

“Pra gente, essa situação é muito grave. Mesmo estando em período eleitoral, e as pessoas podendo dizer que esse ato é por conta do lado A ou B, a gente não podia ficar calado. Queríamos mostrar que existem pessoas e organizações que estão de olho no que acontece em relação a nossas crianças, aos jovens negros da comunidade. Então a gente não poderia deixar, mesmo com todas as dificuldades e pressão que a gente sofreu. Teve momentos em que a gente pensou em desistir, por preocupação em relação à população à qual estamos fazendo referência, mas a gente disse: “Não, nós somos fortes, temos que gritar e dizer que não aceitamos esse crime na nossa comunidade”.

Ato em defesa das meninas venezueladas difamadas por Bolsonaro

 “Porque dizer ‘pintou um clima’ com uma criança de 14, 15 anos, isso é pedofilia. Infelizmente, estamos em um pais que tem um presidente que, tudo que ele fala, ele leva para o lado da ‘brincadeira’, como se tudo fosse normal”, critica.

O professor Matheus Costa, diretor do Centro de Ensino Médio São Francisco (Chicão), também presente no ato, ressaltou o impacto das falas de Bolsonaro para a formação das crianças e adolescentes da cidade. “Primeiro, isso gera uma baixa autoestima e fortalece esses estereótipos. A gente luta muito para empoderar, cada vez mais, nossos jovens, para o jovem poder sonhar, e, principalmente, as mulheres se posicionarem no mundo diante de situações em que se sintam oprimidas. A gente fica decepcionado e impactado que uma frase dessas venha de uma autoridade, e a autoridade máxima do nosso País. Temos de lutar, reagir e não se calar diante de uma situação como essa. Não tem essa de pintar clima com uma adolescente de 14 anos”, afirma Matheus. 

“Isso é um absurdo, e mostra a visão de mundo dele. Se ele demonstra isso em uma situação corriqueira, e reage dessa forma, imagine diante de uma política pública que ele, sendo presidente do nosso país, tem que levar adiante? Como ele vai reagir pra gente combater a explicação sexual infantil? Então isso mostra muito como ele olha para a infância e juventude, e o que ele espera de uma adolescente, principalmente uma mulher de periferia”.