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Por que a polícia é despreparada para lidar com manifestações

Todos os eventos recentes envolvendo a onda de manifestações que o país vive têm comprovado que a polícia, civil ou militar, não está preparada para lidar com essas situações conflituosas.

A atuação policial se caracteriza pelo abuso. A mais evidente forma de abuso é a violência da PM nos protestos, com banalização dos tiros de borracha e golpes indiscriminados, inclusive com perseguição aos fotógrafos, como narrado em artigos de Mauro Donato aqui no DCM.

Outra forma de abuso gritante tem sido a escolha do crime, em que estaria incurso o manifestante preso, feita pelo delegado. Claramente, muitos delegados têm atribuído crimes que não foram os cometidos pela pessoa presa, com o intuito de dar uma resposta mais severa aos fatos. É isso que explica os surgimento de ideias bizarras, como atribuir crime contra a segurança nacional ou de organização criminosa, a alguns manifestantes, o que leva à prisão, já que um simples crime de dano não permitiria que eles ficassem presos.

Nem todos delegados praticam esse abuso, é verdade. Ouvi de um aluno um relato instigante. Logo nos protestos iniciais, esse jovem tinha participado da passeata e estava em uma loja de conveniência de um posto, com sua bicicleta. PMs chegaram no posto e prenderam os jovens, que naquele momento não faziam nada. Sua bicicleta foi abandonada no chão, apesar de sua reclamação, e ele levado à delegacia.

Lá, apesar dos PMs pretenderem a prisão por crime de quadrilha, o delegado não autuou os jovens porque eles não haviam cometido qualquer delito. De volta ao posto, sua bicicleta — “meu único patrimônio”, como ele disse tristemente — havia sumido. Nesse caso, o abuso foi apenas da PM.

Em outros casos, o delegado confirma a prisão abusiva do PM, atribui ao manifestante um crime bem mais grave do que o praticado, para manter preso o manifestante.

Não tenho a menor dúvida de que em muitas manifestações crimes são cometidos. Em nenhum momento sustentei que a motivação política das manifestações legitima qualquer ato cometido. Também não afirmo que na repressão a esses movimentos seja proibido o uso da força pela PM.

Inegavelmente, muitos manifestantes cometeram lesão corporal (art. 129), dano (art. 163), incêndio (art. 250) e, talvez, até tentativa de homicídio (art. 121), e isso permite a autuação dessas pessoas e o uso da força para contê-los no momento da ação.

A questão é o limite da atuação das duas polícias. Se observarmos bem, fica patente que a polícia no Brasil privilegia a autoridade, em detrimento da legalidade. Qualquer forma de contestação é insuportável para um policial, principalmente para o militar. Parece ser essa a razão do ódio dos PMs aos fotógrafos, que revelam e contestam a forma como atuam. Para um militar isso é uma afronta à sua autoridade, que nessa hora prevalece sobre o princípio constitucional da liberdade de expressão.

O delegado “inventa” os crimes maiores, porque não se conforma com a “brandura” da lei, que permitiria que o manifestante saísse solto.  Assim, ao invés de aplicar a lei corretamente, prefere ele atribuir um crime bem mais severo, que não existiu. É o predomínio de sua vontade sobre a lei. Ato mais claro de abuso de poder não existe!

Tais abusos não foram revelados nesse momento. Todos os que observam a atuação policial sabíamos disso. Mas é fato que o comportamento da polícia nos episódios atuais figura como uma radiografia didática do abuso e da falta de preparo policiais.

José Nabuco Filho

José Nabuco Filho é mestre em Direito Penal pela Unimep, professor de Direito Penal da Universidade São Judas Tadeu e quarto-zagueiro clássico. Seu email: j.nabucofilho@gmail.com

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