Por que ainda militamos por pronome neutro enquanto mulheres são violentadas e mortas? Por Nathalí Macedo

Atualizado em 11 de maio de 2021 às 14:52
Estupro. Foto: Reprodução / Ilustração

Reza a lenda que toda vez que uma feminista liberal usa sua voz – conquistada com sangue e suor pelas mulheres que vieram antes dela – pra contestar pronome de tratamento ou reinvindicar seu direito de andar sem sutiã, morre uma feminista raiz.

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Acredite se quiser: ao passo que muitas de nós lutamos pelo direito de sobreviver, de andar nas ruas sem assédios/estupros/importunações sexuais ou de viver em segurança dentro de nossas próprias casas, há feministas usando sua representatividade (inclusive nos espaços institucionais) para pautar questões de suma importância, só que não, para as mulheres enquanto grupo político: há quem problematize ainda hoje, por exemplo, ser referenciada em veículos de mídia (ou mesmo em conversas informais) como “esposa de fulano”, mesmo que seu nome e currículo sejam claramente mencionados.

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Enquanto os índices de violência doméstica aumentam em mais de 50% por conta do isolamento social, questionar o machismo embutido nas nossas práticas linguísticas e discursivas é prioridade pra quem?

Amiga, desencana. Gisele Bundchen já nos redimiu desde que Tom Brady se tornou “o marido da Gisele”. Jay Z, ao que me consta, também tem como função principal ser “o marido de Beyoncè”, e faz rap nas horas vagas.

Na verdade, a questão não é essa, a questão é, como em quase tudo, muito maior: é que o feminismo de terceira onda – que marca a cooptação do movimento coletivo de mulheres pelo capitalismo, sobretudo na vertente liberal – elege pautas e prioridades que não fazem sentido para a maioria das mulheres, ou ao menos para aquelas mais afetadas pelo capitalismo patriarcal.

E vá lá que o ‘machismo semântico’ é parte do problema – o problema do patriarcado está, sim, em toda parte – mas usar um espaço de poder, o famoso “lugar de fala” alcançado com tanta luta coletiva para pautar questões secundárias enquanto mulheres literalmente morrem é mais que um desserviço: é um desrespeito pelas que vieram antes de nós, e pelas que estão morrendo e sofrendo violências agora.

Não é à toa que a liberdade sexual é a principal pauta feminista adotada pelas grandes empresas que desejam usar o movimento para gerar lucros enquanto evitam qualquer envolvimento com políticas afirmativas para mulheres.

Também não é por acaso que o feminismo da nossa geração, o chamado “feminismo de terceira onda”, venha em uma embalagem de superficialidade e pautas secundárias (terciárias, quaternárias, às vezes sequer são pautas…): enquanto a potência do nosso movimento coletivo se concentra em questões irrelevantes, nós perdemos o foco no que de fato importa para todas – divisão justa do trabalho doméstico, economia do cuidado, políticas afirmativas de inclusão das mulheres em espaços de governança participativa, combate ao machismo institucional, políticas afirmativas de autonomia financeira para mulheres em situação de violência ou vulnerabilidade, recortes de raça e classe nos debates de gênero (a lista é extensa, como você pode imaginar).

É assim que respondemos à pergunta do título: as pautas mais populares do feminismo de terceira onda são, não por acaso, aquelas que foram cooptadas pelo capitalismo e viralizadas sob distorções nocivas.

A história do movimento organizado de mulheres por equidade de gêneros – hoje categorizado em várias vertentes de feminismos -, que está dividida entre primeira, segunda e terceira onda, também explica a questão: a primeira onda feminista (que surge no final do século XIX) teve como pauta principal a luta pelo sufrágio universal e direitos civis básicos.

Já a segunda onda, datada do período entre guerras (quando as mulheres então assumiam funções masculinas legadas por homens vítimas da guerra), expandiu e aprofundou o movimento, incluindo questões como direitos reprodutivos, desigualdade salarial, mercado de trabalho e desigualdades de diversas ordens.

Hoje, na chamada terceira onda (que se arrasta desde os anos 80), nossas pautas e interesses foram esvaziados de sentido com a prevalência de tendências liberais.

Para além de representarem recortes temporais – fases da luta das mulheres por liberdade – esses períodos ou “ondas” denotam valores próprios, pautas específicas e buscas coletivas diferentes e condizentes com seu tempo, e as pautas do feminismo de terceira onda – o período que atravessamos agora, a duras penas – focadas em questões como liberdade sexual, representatividade na mídia e um conceito distorcido (e individual) de empoderamento refletem um tempo em que o movimento de mulheres está, quer percebamos, quer não, em grande parte a serviço do capital.

Pense nisso quando se sentir tentada a militar pra não ser chamada de esposa de fulano ou aderir a uma hashtag qualquer pela “liberdade sexual” como legenda de uma foto com pouca roupa nas redes sociais enquanto chama isso de revolução feminista.