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Por que Assange escolheu o Equador

 

 

“Bem-vindo ao clube dos perseguidos”, disse o presidente do Equador, Rafael Correa, a Julian Assange. Assange o entrevistava, via Skype, para seu programa de tevê “O Mundo Amanhã”, veiculado pela emissora Russia Today.

A frase acima explica por que Assange escolheu o Equador na busca de refúgio político. No instante em que escrevo, estou prestes a sair de casa rumo à embaixada do Equador em Londres. Numa reviravolta extraordinária da saga assagiana, o fundador do Wikileaks se instalou ali ao mesmo tempo em que pediu formalmente asilo ao governo de Correa. O pedido está sendo analisado, avisou o Equador.

Buscar proteção numa embaixada não é uma garantia de que você vá se livrar de problemas políticos locais. Sob a ditadura comunista, um cardeal húngaro passou 15 anos na embaixada americana em Budapeste até que conseguisse, finalmente, deixar o país. Um ex-presidente panamenho que imaginou se libertar do cerco americano na embaixada do Vaticano no Panamá foi submetido, ali, a sessões de rock altíssimas em regime de 24 por 7 até que decidisse ir para a rua – onde foi preso. (Em Guantanamo, os americanos usariam exponencialmente este tipo de tortura sonora nos interrogatórios, mas com um repertório mais variado: até canções da Vila Sésamo eram tocadas infinitamente pelos torturadores.)

Mas as chances de Assange são bem melhores.

O vídeo com a entrevista sugere fortemente isso. Correa e Assange têm a uni-los um justificado sentimento de antiamericanismo, e uma visão de mundo de esquerda.

Nos célebres telegramas diplomáticos americanos vazados pelo Wikileaks, emergiram apreciações agressivas da embaixadora dos Estados Unidos no Equador. O governo de Correa pediu explicações, e ela afirmou que não devia satisfações ao Equador. Acabou expulsa. Na entrevista, Correa diz que ela parecia personagem da “Guerra Fria”, ultraconservadora petrificada.

Vale a pena ver a entrevista. Infelizmente, não encontrei uma versão que contivesse legendas em português, e peço desculpas.

Correa festeja a diminuição da influência dos Estados Unidos na América Latina. Sem surpresas: basta ver os resultados da época em que a América Latina era um quintal americano: pobreza para 99%, riqueza para o 1% que fazia o tipo de serviço que interessava aos Estados Unidos: enriquecê-los ainda mais. A história está repleta de golpes militares promovidos pelos americanos contra líderes — eleitos democraticamente — que parecessem preocupados mais com seu próprio país do que com os Estados Unidos. “Só um país nas Américas sempre esteve livre de golpes militares: os Estados Unidos”, diz Correa. Ele sorri muito. Parece um sujeito de bem bom o mundo. Correa, uma espécie de Chaves de paletó e gravata, tem um senso de humor fino. Numa altura da conversa, afirma que os democratas e os republicanos americanos são tão diferentes quanto o que ele pensa “de manhã e à noite”. Ele estudou nos Estados Unidos, e se afirma um socialista cristão, não marxista.

A conversa vai para a mídia, em certo momento.  A relação entre Correa e a mídia tradicional equatoriana é complicada. Correa a acusa de boicotá-lo, e é acusado por ela de cercear a livre informação.

Livre informação?

A maior parte das emissoras de televisão do Equador, por exemplo, pertence a bancos. Quando Correa quis promover mudanças no sistema financeiro para que o Equador ficasse menos exposto ao vendaval bancário mundial dos últimos anos, foi intensamente combatido pelos telejornais. Ele mostra, no programa, um livro lançado há pouco por dois intelectuais argentinos, Wikimedialeaks. Nesse livro, os autores mostraram, país por país, o que o Wikileaks passou para publicações mundo afora e o que acabou sendo usado. Nada que fosse desabonador à mídia equatoriana foi publicado no Equador, ao passo que todas críticas a Correa foram trombeteadas freneticamente.

Assange faz um bom ponto: a melhor maneira de lidar com um monopólio — seja do que for, incluído o de pensamento – é criar condições, no mercado, para que alternativas apareçam e floresçam. (Presumo que seja esta a lógica por trás do apoio do PT a vozes que não sejam as dos Mervais, Azevedos, Kamels, Jabores, Mainardis etc.)

Torço.

Torço muito por Assange. O Wikileaks ajudou a humanidade ao revelar o caráter abjeto da guerra que os Estados Unidos movem ao “terror”. Assange fez mais pela paz que a esmagadora maioria dos agraciados pelo Nobel. Se ele cair nas mãos dos Estados Unidos, o resto de sua vida será um suplício. Matar bin Laden não resolveu o dramático problema social e político americano. Matar Julian Assange, como tantos direitistas da mídia e da política americana têm proposto, também não freará o declínio dos Estados Unidos, hoje reduzido a um país patético que não tem prestígio no mundo, não tem sequer dinheiro para pagar as contas — mas, e aí está o perigo para o planeta, tem muitas armas e uma vontade criminosa de usá-las.

Penso em Assange, um mártir real da livre expressão, e lembro das últimas palavras que Nick, o narrador de O Grande Gatsby, diz a Gatsby quando este, para usar a expressão de Correa em sua conversa com Assange, já pertencia ao clube dos perseguidos: “Você vale mais que todos eles.”

Paulo Nogueira

O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.

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