Pretos e pobres se esforçam e recebem desprezo do presidente do seu país. Por Denise Assis

Atualizado em 23 de setembro de 2022 às 10:45
O presidente Jair Bolsonaro (PL)
Foto: Reprodução/Sergio Moraes/Reuters

Por Denise Assis

A minha ex-faxineira, uma pessoa do bem, que trabalhou comigo por quatro anos, resolveu crescer. Quis deixar de fazer faxina e sonhava trabalhar em uma empresa. Ela falava sempre do seu desejo de vestir um uniforme, em uma empresa, e trabalhar circulando entre muitas pessoas. Respeitei, dei força.

Pediu que eu formatasse um currículo para ela, que tinha uma história rica, intensa mesmo.

Adolescente, viu a mãe embarcar num romance com um cidadão alemão, que as levou para morar no país dele. Lá se foram as duas, sem falar nada da língua, mas cheias de expectativas. Flávia, vamos dizer que seja este o seu nome, passeou pela Europa, namorou um turco, estava noiva dele, com anel de safira no dedo, quando a mãe se desentendeu com o companheiro e veio de volta para o Brasil. Flávia até pensou em bater pé e se casar com o noivo turco, permanecendo na Alemanha, mas insegura, sem parentes, apenas entregue à nova família, voltou.

Trouxe na bagagem fotos de viagem à Paris, na torre Eiffel, casacos forrados de pele, a lembrança de uma vida confortável e a destreza em uma língua que ninguém falava. Preta, bonita e despachada, tentou emprego de recepcionista, alegando que sabia alemão. Ninguém acreditou. Não lhe deram oportunidade. Voltou para a comunidade miserável, em Duque de Caxias, rodeada de vala negra, alagamentos em dia de temporal e vizinhos bons e solidários. Se casou, teve um casal de filhos e descasou.

Conseguiu, enfim, o sonhado emprego no IBGE, onde usava uniforme e portava crachá. Servia cafezinho. Veio o golpe (2016), o sumiço dos empregos com carteira e houve cortes. Flávia rodou. Em seguida, a pandemia, e Flávia virou avó de um menino da filha separada, ambas sem emprego. Foi aí que ficou “invisível”. A pobre que nem sabe por onde começar a procurar ajuda. Tentou o auxílio emergencial. Por imperícia com a ferramenta fornecida pelo governo, pelo celular, não conseguiu se cadastrar. A filha tampouco. Enquanto isto, o filho, bom na escola, estudava, estudava e estudava.

Foi aprovado no último Enem, para a UFRJ. A universidade top de linha entre as públicas. Está cursando Letras com licenciatura em português/inglês. Na noite de anteontem Flávia entrou em contato. O filho, aprovado na universidade, aguarda auxílio alimentação/transporte e de material didático. Até lá, Mãe e filha se viram em “bicos” para que ele não deixe de ir às aulas e o netinho tenha o que comer. Elas, me disse, “se viram”. Um dia comem, outro não comem, para que o jovem não deixe de estudar.

Flávia, muito constrangida, me pediu ajuda. Não quer ver o filho interromper o curso, mas está ameaçada de despejo do barraco onde paga aluguel. “A senhora desculpe, estou envergonhada, mas não temos mais o que comer”. Claro. Socorri. Enquanto isto, procuro um cadastro para que ela possa passar a receber uma cesta básica. Assim, sem precisar gastar na comida, não tenha que ir para a marquise mais próxima. Seu filho quer ser professor universitário. E se esforça para isto. A mãe o instruiu, educou e ele, sim, se esforçou.

Flávia, o filho, a filha e o netinho são pessoas que estão a léguas do universo de Paulo Guedes, que não sabe onde estão os famintos do país. Acha mesmo que é uma fantasia da oposição, para derrotar o seu presidente.

O presidente, diz que pobre não se esforça para se educar. Não querem nada a não ser mamar nas tetas do governo, de onde saem milhões para os seus comícios, as suas “motociatas”, as suas viagens internacionais e os seus deslocamentos. Seus apoiadores, tal como o empresário identificado como Cassio Joel Cenali – o que negou marmita a uma “petista” – receberam várias parcelas do auxílio a que Flávia não teve acesso. Tampouco a filha, ambas sem renda para sustentar casa e comida, mas na luta para manter o jovem universitário (irmão e filho) na sala de aula. Se isto não é esforço…

Para a “elite” branca pobre é transtorno, é a borda do país, de onde pendem dependurados até despencar para a morte, ignorada. Um a menos, devem pensar, quando a Polícia abate um adolescente preto e desvalido. Quando tudo o que precisam é de uma oportunidade. Flávia vai conseguir ver o filho diplomado, acredita. Ela vai votar no Lula no dia 2 de outubro. E, no mínimo, não vai mais ter que ler ou ouvir na TV as sandices de um presidente que tem desprezo pela sua gente.

Texto publicado originalmente em Jornalistas pela Democracia

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