Quando a periferia de São Paulo foi a Buenos Aires fazer sucesso com literatura

Atualizado em 11 de junho de 2014 às 9:55

 

São Paulo foi a cidade homenageada na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires e levou cem escritores sobre os quais provavelmente você nunca ouviu falar. Trata-se da maior feira literária do mundo em língua espanhola, um evento tradicional com 40 anos de idade. Mas a participação brasileira não teve as figurinhas carimbadas das grandes editoras. Em vez delas, os representantes foram desconhecidos escritores da periferia. E o resultado foi um sucesso surpreendente, revelando uma nova maneira de fazer literatura.

Os participantes — poetas, produtores culturais, performáticos — eram provenientes de coletivos conhecidos principalmente por produzir saraus. “É uma literatura nova, que precisa ser estudada e consumida também de maneira nova”, diz Tarcila Lucena, Supervisora de Ação Cultural da Biblioteca Mário de Andrade, a quem foi delegada a curadoria do evento. Nessa entrevista Tarcila explica os motivos do sucesso em Buenos Aires.

Qual foi a ideia por trás desse evento?

A gente criou uma concepção: São Paulo é uma cidade incrível, no duplo sentido, que em espanhol funciona bem. Incrível no sentido surpreendente e também não crível. Afinal, há a imagem da capital financeira do país, mas também existem Parrelheiros, Paraisópolis, São Miguel e toda uma periferia. A ideia foi quebrar esse clichê da São Paulo moderninha. A São Paulo contemporânea é uma cidade inacreditável e os saraus da periferia é o que ela tem de muito novo, aparecendo.

Como foram escolhidos esses poetas e escritores?

Foi uma escolha estética, pois se trata de uma produção nova que é de muita qualidade, esteticamente falando. E são escritores que não iriam sozinhos. É comum as grandes editoras mandar seus escritores, mas quem vai mandar essa gente? Eles não têm dinheiro. Daí teve o motivo político, apoiado pelo prefeito: vamos gastar a verba com quem não tem condições financeiras de ir lá

Quais critérios desta seleção?

Os saraus deveriam ter no mínimo dois anos de existência, acontecendo regularmente ainda que de maneira informal. E deveriam ter profunda penetração na comunidade, com conhecimento e participação ampla da região. Desse trabalho, selecionamos 17 coletivos. E os representantes de cada um é que decidiram quem levariam. Eu só disse que levaria 100 participantes, eles definiram cinco convidados para cada coletivo e se entenderam. Alguns até cederam lugares para outros. Daí eles decidiram levar 97 e as outras vagas destinaram a um cinegrafista e dois fotógrafos, com cachês pagos por eles. Esses meninos têm outro padrão de comportamento, não têm aquele ego artístico do autor publicado por editora. Ao contrário, possuem uma grande noção de coletivo.

Por que as grandes editoras não foram?

No começo, nós tentamos a participação delas, para que vendessem seus livros e apresentassem seus autores lá, mas não conseguimos. Elas queriam investimento público, ou seja, que as despesas fossem bancadas pela prefeitura. As editoras estavam deslumbradas com os 18 milhões que o Ministério da Cultura gastou para levar seus autores à feira de Frankfurt e talvez esperassem o mesmo. Mas nossa verba foi de 2 milhões. E outra agravante foi o Elio Gaspari criticar sistematicamente na Folha a verba gasta para financiar a participação das editoras do mercado em Frankfurt, uma feira que elas vão espontaneamente. Então nós investimos na infraestrutura, no preparo do espaço reservado a São Paulo na feira e quem quisesse que levasse seus autores.

E como são esses saraus?

As pessoas dançam, cantam, declamam, fazem performance, tocam instrumentos. Isso é literatura viva, literatura não encadernada, embora tenha um monte de gente publicando. Mas nós temos a mentalidade de que literatura é livro e essas pessoas tornaram os saraus novamente públicos. Sarau nada mais é do que literatura viva, acontecendo.

Foi isso que fizeram em Buenos Aires?

Foi. E surpreenderam. As estantes vizinhas reclamavam, porque nós fizemos os saraus na feira, e as pessoas cantavam, faziam música e barulho. Toda abertura de sarau tem um grito de guerra, com tambores, que avisa que o sarau está chegando. O estante ficava lotado. E eles recitam não apenas falando, mas de múltiplas maneiras. O público adorava. E a mídia também, nos recebeu muito bem, com surpresa positiva.

Como é que se formaram esses coletivos?

De uma maneira muito interessante, espontânea, natural e atraíram o público da região em que estão. Aparentemente as pessoas não estão interessadas em literatura, mas a verdade é que estão. Claro que é uma batalha formar um sarau e consolidá-lo, mas é uma vitória quando crescem. Eles sabem que têm que competir com drogas, com funk, com baladas vazias. E são desconhecidos do pessoal que frequenta a Vila Madalena, a Vila Olímpia, o Baixo Augusta, que se acha muito moderno e que sabe ler. Mas esse pessoal vai acabar lendo os poetas da periferia, vão ter que ler, porque têm uma produção literária absurdamente boa. O verso “nóis é ponte e atravessa qualquer rio” (do poeta Pezão) traduz muito bem o espírito deles. Porque esses caras estão pra lá dos rios Tietê e Pinheiros. É uma nova mentalidade literária, muito ligada no coletivo. Não tem disputa de ego. Tem uma parte do poema que diz “para nóis, nós é singular”. Isso diz tudo.

Quer dizer que está surgindo uma nova literatura?

Dentro da literatura convencional, não acho que essa atividade esteja no nível dos grandes escritores. Mas é uma literatura nova, que precisa ser estudada e consumida também de uma maneira nova. É gente que escreve do jeito que quer, com o palavreado que quer, sem se prender às normas cultas ou aos padrões da academia. Temos que ir lá, olhar, não se pode ignorar esse movimento.

Por que a mídia não divulgou o evento?

A mídia brasileira não deu atenção porque, acho, teve uma falha da nossa parte, deveríamos ter mandado mais notas, ter tentado divulgar mais. Mas também acho que a imprensa da área de cultura é pautada por assessoria de imprensa. Tem um ou outro jornalista que procura, se interessa, vai atrás. O outro motivo é que a mídia não está preparada para esse tipo de manifestação. A verdade é que vivemos numa cidade extremamente conservadora, mas que se acha muito moderna. As pessoas da área cultural são muito críticas, leem sempre os mesmos autores. Então as pessoas e a mídia ignoram esses autores da periferia. Periferia não existe culturalmente para jornalista, a não ser na hora da violência, das mortes. Eu acho que isso é provincianismo, embora se achem muito cosmopolitas.

Mas quem está na periferia não quer vir para o centro?

Hoje em dia, não. Até os anos 1990, os moradores da periferia queriam sair do bairro, ir em busca de melhores condições de vida. Hoje, eles querem ficar lá, querem ter cultura lá, saúde lá, querem viver bem lá. É um processo de inclusão, sim, mas com o desejo de ser incluído vivendo na periferia, sem precisar sair de lá.