Quem é contra câmera em farda quer PM matador ou corrupto, diz especialista. Por Leonardo Sakamoto

Atualizado em 3 de janeiro de 2024 às 16:20
Câmera em colete de policial militar de trânsito na cidade de São Paulo. Foto: reprodução

“Há duas explicações para políticos que são contra câmeras corporais no fardamento dos policiais: ou querem um policial matador ou um policial corrupto nas ruas.” A avaliação é de Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “O policial que faz uso da força de forma legítima não se preocupa com a câmera, o policial que atua de forma honesta também não”, disse ela à coluna.

As câmeras corporais, que se tornaram um dos principais assuntos da eleição para o comando do Estado de São Paulo, em 2022, voltaram às manchetes por causa de uma declaração do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Ele afirmou que elas não são efetivas para garantir mais segurança à população e que sua gestão não irá investir em novos equipamentos.

“A gente não descontinuou nenhum contrato [das câmeras nas fardas]. Os contratos permanecem. Mas qual a efetividade das câmeras corporais na segurança do cidadão? Nenhuma”, disse em entrevista ao Bom Dia SP, nesta terça (2). Tarcísio foi crítico ao equipamento durante a campanha.

Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, do ano passado, mostra que os batalhões que adotaram as câmeras tiveram redução de 76% na letalidade em serviço. A política vem sendo adotada com sucesso pelo mundo.

“Se o Rio de Janeiro tivesse câmeras corporais há 20 anos, talvez a história do avanço das milícias teria sido diferente, porque limitaria o policial corrupto. As câmeras corporais podem ajudar a evitar a milicianização da polícia de São Paulo”, avalia a diretora do Fórum.

Ao afirmar que a política de câmeras corporais não melhora a vida do cidadão, o governador olha de forma enviesada para o equipamento, fortalecendo uma narrativa de que as forças de segurança estão com as mãos atadas, segundo Bueno. Isso vende a ideia de que as mortes por policiais são instrumento legítimo de controle do crime e não último recurso para defesa própria ou para proteger alguém.

Câmeras ajudaram a acusar e a inocentar na Operação Escudo

O Ministério Público denunciou os policiais Eduardo de Freitas Araújo e Augusto Vinícius Santos de Oliveira pelo homicídio de Rogério Andrade de Jesus, dentro de sua casa, com tiros de fuzil. O caso ocorreu durante a Operação Escudo, que deixou 28 mortes no Guarujá (SP) e Baixada Santista após a morte de um policial no ano passado.

A 3ª Vara Criminal de Justiça do Guarujá recebeu a denúncia e determinou que ambos fossem removidos para serviço administrativo enquanto são julgados.

A acusação, segundo reportagem de Luís Adorno, no UOL, diz que os PMs tentaram forjar a cena do crime, colocando uma pistola com a vítima. Um dos policiais, segundo o MP, obstruiu de propósito a câmera corporal para não mostrar a execução pelo colega.

Ao mesmo tempo, as câmeras na farda livraram os policiais Vitor Nigro Vendetti Pereira e José Pedro Ferraz Rodrigues Junior, que estavam na retaguarda de Araújo e Oliveira. Ou seja, o equipamento foi fundamental tanto para incriminar quanto para inocentar.

Logo após as mortes, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, afirmou que assim que o Poder Judiciário ou o MP-SP requisitassem o conteúdo das câmeras, ele seria integralmente fornecido. Depois, começaram a surgir desculpas de que nem tudo teria sido gravado. E suspeitas de que o comando teria feito vistas grossas.

Isso seria motivo para reforçar o uso dos equipamentos em operações como essa. Mas o Tribunal de Justiça de São Paulo definiu que o uso de câmeras corporais pela PM não é obrigatório em operações que tenham como finalidade responder a ataques contra agentes, como a Operação Escudo.

Câmera em farda da PM. Foto: reprodução

Câmeras em fardas ajudam a combater corrupção policial

A discussão, contudo, não se limita à questão da letalidade. Pois, se por um lado, em um país violento e com impunidade elevada, como o nosso, o discurso de “bandido bom e bandido morto” dá voto, por outro, a constatação da corrupção tira. E as câmeras são instrumento de controle de corrupção policial.

“Facções criminosas são o que são no Brasil porque estão contando com a adesão de setores do Estado. O crime organizado se desenvolve porque há corrupção no estado, do arrego do PM na biqueira até casos maiores”, afirma Samira Bueno.

“O policial que mata e é preso não é necessariamente malvisto entre seus pares. Mas o que está preso por corrupção sim. E o comando da PM quer controlar a corrupção”, avalia. “E se é corrupto, a câmera torna mais difícil para ele praticar suas atividade ilícitas.”

Diante da declaração do governador Tarcísio de Freitas, a dúvida é se o contratos para as câmeras, que vencem no meio do ano, serão renovados no formato de hoje ou se o aditivo mudará o seu esquema de funcionamento.

Como, por exemplo, deixar de gravar em tempo integral e ser ligada apenas quando o policial quiser, o que limitaria sua efetividade. Hoje, para ir ao banheiro ou comer, o policial pode retirar a câmera.

População tem usado câmeras de celulares para se defender

Sem a proteção das câmeras de policiais, a população recorre às câmeras de seus próprios celulares para garantir o registro de situações de abuso.

Por exemplo, em maio de 2023, viralizou nas redes sociais o vídeo de Vilma de Oliveira, de 70 anos, levando um soco no rosto de um policial militar ao tentar proteger seu filho, já rendido, que estava sendo asfixiado por outro PM, na zona rural de Igaratá (SP). Após ser esmurrada e cair, ela se levantou e continuou tentando ajudar o rapaz.

Já em junho de 2020, policiais torturaram um jovem na periferia norte da capital paulista.. Se não fosse um vídeo que viralizou nas redes sociais mostrando chutes, socos e cacetadas em um rapaz rendido, teria prevalecido a versão apresentada na delegacia pelos policiais militares de que ele caiu e se machucou.

Outro exemplo ocorreu em 1º de dezembro de 2019, quando uma ação violenta da PM levou à morte de nove jovens durante um baile funk na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo. Os vídeos gravados pelos frequentadores da festa e por moradores da favela de dentro de suas casas foram fundamentais para desmentir a narrativa das forças de segurança.

Gravar e postar intervenções policiais violentas, identificando placas de viaturas e os rostos dos envolvidos, se tornou frequente. Porque a violência policial é alimentada com a certeza do “tudo pode”, passada por governos que não controlam ou pouco comandam suas polícias e por outros governantes que incentivam o excludente de ilicitude.

Publicado originalmente na Coluna do Leonardo Sakamoto, no Uol

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