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Se há alguma injustiça no Nobel de Dylan, é que ele já deveria ter ganhado há tempos. Por Kiko Nogueira

Nobel de Literatura

 

Um dia e algumas horas depois do anúncio de que ganhou o Nobel de Literatura, Bob Dylan ainda não havia recebido os cumprimentos da Academia Sueca.

Ele está excursionando em Las Vegas. Segundo o Washington Post, seu agente e o diretor da turnê já foram contatados. Dylan não atendeu o pessoal.  

Um amigo, Bob Neuwirth, afirmou que ele, eventualmente, poderia “inclusive não agradecer” a honraria. Não se trata de esnobismo. É que Dylan não precisa do Nobel.

Das bobagens proferidas pelos críticos, a mais pueril é a que o diminui como “letrista” em contraposição a “poeta”. A resposta óbvia veio da porta-voz da instituição, Sara Danius, em Estocolmo.

“É um grande poeta na tradição do idioma inglês. Há 54 anos ele se reinventa, constantemente criando uma nova identidade”, apontou ela.

“Se olharmos para trás, bem para trás, descobrimos Homero e Safo, que escreveram textos poéticos ou peças que foram feitos para ser ouvidos, apresentados, frequentemente junto com instrumentos, e é a mesma coisa com Bob Dylan. É a mesma coisa com Bob Dylan – ele pode ser lido e deve ser lido”.

Dylan vai receber 2,8 milhões de dólares e uma medalha em dezembro. O que vai fazer com isso é um mistério. Dylan costuma amarrar sua estatueta do Oscar em cima do piano elétrico nos shows.

Aos 75 anos, ele continua fazendo turnês, destroçando seus clássicos até eles ficarem irreconhecíveis. A versão de Eduardo Suplicy para “Blowin’ in the Wind” é mais fiel que a do autor — e olhe que estamos falando de Suplicy.

Robert Allen Zimmerman teve um enorme impacto na cultura desde o primeiro disco, em 1962. Narrou histórias, criou personagens, definiu tendências, falou de amor, desespero, Deus, raiva, sexo, morte, juventude e política.

Os detratores alegam que seu trabalho não sobrevive sem o acompanhamento musical. Besteira. Os versos de “Like A Rolling Stone” são uma prova disso.

Peço perdão por não traduzir. É aquele negócio: traduttore traditore.

You used to be so amused / At napoleon in rags and the language that he used / Go to him now, he calls you, you can’t refuse / When you ain’t got nothing you got nothing to lose / You’re invisible now, you got no secrets to conceal.

Ou as imagens bíblicas de A Hard Rain’s A-gonna Fall, composta em 1962: I saw a newborn baby with wild wolves all around it / I saw a highway of diamonds with nobody on it / I saw a black branch with blood that kept drippin’ / I saw a room full of men with their hammers a-bleedin’ / I saw a white ladder all covered with water / I saw ten thousand talkers whose tongues were all broken / I saw guns and sharp swords in the hands of young children / And it’s a hard, it’s a hard, it’s a hard, and it’s a hard / It’s a hard rain’s a-gonna fall.

“Eu vi armas e espadas afiadas nas mãos de crianças”. Você não as vê todo dia?

Como essas, há inúmeras outras. Dylan revolucionou o rock e, usando o rock como veículo, capturou uma época. Numa entrevista de 1965, falou que a “música popular é a forma de arte que traduz o tempo em que vivemos. É onde as pessoas se unem. Não é nos livros. Não é em cima do palco. Não é nas galerias”.

Claro que ele errou muito também. Mas são 54 anos de criação. Fique apenas com a belíssima e enigmática “Jokerman”, de 1983, e jogue o que ele fez daí em diante no lixo e ainda assim terá um gigante.

Salman Rushdie, que espera seu Nobel há décadas, encarou a derrota desta maneira: “Dylan é o brilhante herdeiro da tradição do bardo. Excelente escolha”.

O tamanho dele como artista pode ser medido pela coragem de desafiar o próprio público. Em 1966, tocou no Royal Albert Hall, em Londres. Fãs de sua fase folk não se acostumavam com a guinada elétrica. Era um traidor.

Da plateia, um sujeito grita: “Judas!”. Ele responde: “Eu não acredito em você. Você é um mentiroso!”

E então se vira para a banda (o grupo mais teria vida própria como a fabulosa “The Band”) e ordena: “Play it fucking loud”. É a senha para entrar “Like a Rolling Stone”.

Se há alguma injustiça nesse caso, é que ele já deveria ter ganhado o Nobel há muito tempo.

Kiko Nogueira

Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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Kiko Nogueira

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