Se o novo ministro da Educação considera a Bíblia infalível, quando começaremos a apedrejar nossos filhos?

Atualizado em 11 de julho de 2020 às 13:57
Milton Ribeiro

A nomeação do reverendo Milton Ribeiro para o Ministério da Educação reacende hoje a polêmica sobre o uso do castigo físico para educação da criança.

Em abril de 2016, num sermão para a Igreja Presbiteriana Jardim de Oração, ele disse que, ao “disciplinar o filho”, este deve sentir dor.

“Essa correção é necessária para a cura. Não vai ser obtido por meio justo e métodos suaves. Talvez aí uma porcentagem muito pequena de criança precoce, superdotada, é que vai entender o seu argumento. Deve haver rigor, severidade. E vou dar um passo a mais, talvez algumas mães mais até fiquem com raiva de mim. Deve sentir dor”, disse.

Milton Ribeiro fez a pregação depois da vigência da Lei 13.010/2014, que alterou o artigo 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente e passou a considerar crime o castigo que resulte em sofrimento físico.

Na época em que a lei foi aprovada, juristas consideraram que uma palmadinha não se enquadraria no tipo penal.

Mas o reverendo, como deixou claro, disse que a disciplina vai além da palmadinha. Se a criança não sentir dor, a ação dos pais não alcançará o resultado pretendido — na visão dele, educar.

O conselho do reverendo poderia ser enquadrado como apologia de crime, já que a lei em vigor defendia exatamente o contrário.

Mas, no universo das igrejas evangélicas, não é incomum que pastores definam sua comunidade como uma nação dentro de outra nação.

No caso, uma nação evangélica, com regras próprias, em que a Bíblia está acima da Constituição.

O problema é que a Bíblia, lida de maneira segmentada, fora do contexto, pode produzir tragédias.

O argumento de Milton Ribeiro está escorado num provérbio, expresso no versículo 15 do capítulo 22:

“A estultícia (estupidez) está ligada ao coração da criança, mas a vara da disciplina a afastará dela”.

Como é comum em sermões, o pastor usa a Bíblia como um livro infalível e diz que as mães, se querem contestá-lo, devem duvidar do texto sagrado.

É falacioso o argumento dele, porque, se a Bíblia tivesse de ser aplicada literalmente, os pais deveriam levar filhos desobedientes para que os anciões da comunidade (pastores?) os matassem.

Está no capítulo 21 do livro Deuteronômio, a partir do versículo 18:

Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não obedecer à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e, castigando-o eles, lhes não der ouvidos, então seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar. E dirão aos anciãos da cidade: Este nosso filho é rebelde e contumaz, não dá ouvidos à nossa voz; é um comilão e um beberrão. Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão, até que morra; e tirarás o mal do meio de ti, e todo o Israel ouvirá e temerá.

Uau.

Ouvindo a pregação de Milton Ribeiro sobre a educação das crianças, entende-se por que Bolsonaro o escolheu.

Milton vê o ser humano com uma inclinação natural para cometer o mal. Mesmo as crianças.

“A ideia que muitos têm de que criança é inocente é relativa”, afirmou. “Para alguns assuntos, ela não tem inocência nenhuma”, acrescentou.

Em seguida, citou uma cena que teria presenciado em uma viagem de avião.

“Tinha uma criança que não tinha um ano de idade. Ela mandava nos pais. E ela gritava. E aqueles pais passavam vergonha diante de todo o pessoal ali. As coisas que ela dizia e fazia, a gente via que ela dominava toda a cena”, comentou.

Há questões teológicas levantadas pelo pastor que, mesmo para um leigo, soam estranhas. Por exemplo, ao defender a infalibilidade da Bíblia, disse que se trata de um livro secular.

É exatamente o contrário, do ponto de vista teológico.

Para os teólogos, um livro do Jorge Amado pode ser considerado secular, mas a Bíblia, não. Os religiosos consideram que se trata de uma publicação sagrada e atemporal.

“Acho interessante que a Bíblia, apesar de ser um livro secular, é um livro que contém princípios práticos e, até onde nós podemos ver, esses princípios são vivos, contemporâneos, plenamente aplicáveis nos dias de hoje. E, se você começa a duvidar de alguns princípios, você abre uma brecha para falar: ‘Não, nesse caso aqui não. Naquele outro, também não.’ E aí começa a abrir uma relativização da verdade e dos princípios de Deus”, pregou.

Se verdadeiro o argumento do pastor, é de se perguntar: Quando será a próxima sessão de apedrejamento de adolescentes rebeldes?

Milton Ribeiro tira do contexto versículos para, diriam os críticos mais severos, oprimir sua comunidade e mantê-la sob controle — pastores adoram controlar o rebanho.

Toda a pregação dele poderia ser desmontada com uma única frase atribuída a Cristo, que, como o pastor sabe, é apresentado como a razão de ser toda a Bíblia. De acordo com teólogos, ele é a própria palavra de Deus, o verbo.

Cristo ensinava na Judéia, numa roda, quando adultos tentaram impedir que crianças “indisciplinadas” se aproximassem dele. Ele repreendeu os adultos, não as crianças.

“Deixem as crianças se aproximarem, não as impeçam, pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas”, afirmou.

Ex-vice-reitor da Universidade Mackenzie, na gestão do lúcido Cláudio Lembo, Milton Ribeiro certamente não é ignorante, como seus antecessores Abraham Weintraub e Ricardo Velez.

Mas, pelo sermão, se pode ver que talvez ainda não tenha saído plenamente da Idade Média. Pode ser dar bem com Bolsonaro, mas está a séculos de distância das necessidades do Brasil.

.x.x.x.

A pregação dele começa aos 23:55:

Depois que a reportagem foi publicada, Milton Ribeiro apagou o vídeo. Leia mais:

Novo ministro da Educação apaga vídeo em que defende castigo nas crianças que provoque dor