Secretaria de Educação de Porto Alegre propaga existência do ‘racismo reverso’

Atualizado em 3 de fevereiro de 2024 às 16:24
Associação denuncia conteúdo do curso, considerando que este propaga o racismo, o preconceito e a intolerância. Foto: reprodução

Por Maria Helena dos Santos

Após escândalos envolvendo esquema de corrupção para compra de materiais escolares e supostas fraudes no uso de verbas para reformas em escolas municipais pela Secretaria Municipal de Educação (Smed) de Porto Alegre, outra polêmica envolve a pasta. Na tarde de ontem (30), a Associação dos Trabalhadores em Educação – Atempa, veio à público denunciar e manifestar seu repúdio ao conteúdo do curso de recepção aos novos nomeados para atuarem na secretaria.

Segundo a entidade, o conteúdo do Curso para Ingressantes, destinado aos 420 professores recém-nomeados, ressalta, “entre outros absurdos”, a inverídica afirmação de que “o racismo reverso ou racismo inverso é uma expressão usada para designar a existência de minorias éticas contra grupos étnicos dominantes”. Um exemplo de racismo reverso mencionado pelo conteúdo seria “o preconceito de negros em relação aos brancos”, o que provocou indignação na categoria e em lideranças do movimento negro.

Para a diretora Jaqueline Franco é inaceitável e criminoso que um curso abrigado dentro da plataforma de educação da prefeitura de Porto Alegre, o EducaPOA, contenha uma definição de um conceito inexistente. “Ainda mais com exemplificação fazendo referência à população negra. Esse comportamento só faz afrontar a população negra da cidade e demonstra o racismo institucional presente de forma explícita na administração municipal. Propagar em um curso de recepção a novos servidores um conteúdo deste porte é inadmissível”, destacou.

A Smed informou em nota que o conceito de “racismo reverso” não foi apresentado como legítimo em nenhum dos materiais disponibilizados pela Secretaria, todavia os trechos que foram apontados como dúbios foram alterados para garantir uma melhor interpretação da pauta.

“É de extrema importância a presença no ambiente escolar da pauta do combate ao racismo. Nesse sentido, o Curso para Ingressantes traz a temática para que seja abordada junto dos novos profissionais da rede, no intuito de prepará-los e orientá-los para o trabalho em sala de aula. Nesse contexto, o curso busca para além de reforçar a importância de uma educação antirracista, apresentar termos que poderão ser levados aos professores no cotidiano. Destacamos ainda que os materiais produzidos são baseados na legislação vigente, como a lei nº 7.716/89 que define os crimes de Racismo no Brasil, que é amplamente difundida nos mesmos”, ressalta a nota.

Já a coordenadora da Igualdade Racial na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), Adriana Santos, afirma que assim que soube do teor do conteúdo solicitou providências a serem tomadas pela Smed que imediatamente bloqueou o acesso ao curso. “O objetivo e o que a Smed pretende é retificar o conteúdo, mas não silenciar o tema que é importantíssimo e parte basilar da política educacional que a Secretaria vem implementando”, comenta.

A coordenadora, que acompanha o desenvolvimento da Política de Educação para as Relações Étnico Raciais (ERER) na Rede de Ensino Municipal, afirma que irá revisar o conteúdo do curso. “Quando se trata de um conteúdo delicado como este, a ser colocado numa plataforma de um curso online assíncrono, a abordagem deve permitir fácil assimilação do recado pretendido e se isto não aconteceu ele deve ser alterado para atingir o objetivo”, complementa Adriana.

Profissionais da categoria da educação refutam argumentos da Smed

Diante da divulgação do material disponibilizado no EducaPoa, uma plataforma restrita a servidores e voltada ao aperfeiçoamento e qualificação profissional do funcionalismo, uma onda de revolta e indignação foi gerada entre professores e demais profissionais da educação.

A professora Giselle Maria explicou de maneira didática que na primeira leitura descompromissada do texto parece que a abordagem do “não conceito” de racismo reverso seria para refutá-lo. “Mas, como sempre ensino aos meus alunos, o discurso nunca é inocente e nós atuamos na língua. Reparem nos atos linguísticos presentes aí. A mensagem ‘Racismo Reverso’, em negrito e centralizado no alto do texto, já dá visualmente a ele o status de conceito. Observem como o texto define o que isso seria, dando variedade de designações (racismo reverso ou racismo inverso) e exemplo. Percebam que quando exemplifica o texto não insere nenhuma marca linguística de dúvida ou incerteza, pelo contrário: utiliza o verbo “ser” com caráter definitivo: racismo reverso É”, aponta a professora.

Para Gisele não existe um conceito de racismo reverso porque o mesmo não tem base científica. No entanto, o material não só o define como o explica exemplificando. “E a parte final do texto é ainda mais problemática. ‘…muitas pessoas questionam a validade dessa expressão’. Não há uma negativa à expressão, ao conceito, o que há é a abertura para uma discussão. A mensagem é óbvia: “Olha, tem gente que questiona, mas….”, comenta a professora.

Já o professor Juliano Guedes, diretor da PNE Consultoria de Projetos e Negócios Étnico-raciais, afirma que o caso demonstra que a importância do letramento racial é tanta, que inibiria iniciativas afrontosas como essa da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. “Sabemos que o racismo é concebido por um sistema de opressão, dessa forma não há como sugerir isso da população negra, sabidamente oprimida historicamente. A nota de repúdio da Atempa é mais que adequada e alguma reparação deverá ser feita urgentemente”, avalia Juliano.

Segundo ele, trata-se da Secretaria de Educação de Porto Alegre, a quem cabe orientar com precisão e que tem fé pública. “Não é concebível que sequer haja ambiguidade, o que já seria um problema. A questão é que na segunda frase da colocação, quando diz que um ‘exemplo de racismo reverso é o preconceito de negros contra brancos’, o leitor é levado a aceitar que o suposto racismo reverso, que não existe, é real, uma vez que a própria frase apresenta um exemplo concreto desse racismo na sequência: ‘o preconceito de negros contra brancos’. Aliás, afirmação já problemática”, aponta o professor.

O Coletivo Educação para as Relações Étnico Raciais (ERER-POA), da rede pública municipal de educação também se manifestou. “Consideramos que a nossa rede possui professores e coletivos qualificados para as mais diversas ações pedagógicas e promoções educativas e que a mantenedora precisa qualificar suas práticas aprendendo com seus professores”, afirma em nota.

Lideranças do movimento negro e políticos também manifestaram sua indignação

A deputada federal Daiana Santos (PCdoB/RS), afirmou em suas redes sociais que “não existe racismo reverso” o mais preocupante ainda é isso ser ensinado para quem vai educar as gerações futuras. “Me revolta a forma escancarada com que a Prefeitura desdenha da luta antirracista e do povo negro que construiu essa cidade, de mais de 300 anos de escravização e sangue negro jorrado por essa terra. Efeitos que sentimos até hoje, quando negras e negros estão na base dos índices socioeconômicos e lideram os de violência”, comenta.

Já a deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB) afirma ser um absurdo que seja propagado em um curso da Smed um conceito que além de não existir, criminaliza e relativiza a luta das pessoas negras e indígenas de nossa cidade. “É absurdo que dentro da plataforma de educação da prefeitura de Porto Alegre, o EducaPOA, se trabalhe conceitos que não existem que levam à desinformação e criam estigmas na nossa sociedade”, afirma.

 

Por outro lado, a vereadora Karen Santos (PSOL) questionou qual é o propósito da Smed por trás da escolha desse enfoque sobre o racismo. “Durante uma formação destinada a mais de 400 educadoras/es de escolas públicas em Porto Alegre, localizadas nas periferias da cidade e com grande parcela de estudantes negros, é indiscutível a necessidade de formações que abordem as questões étnico-raciais. Apesar disso, utilizar uma abordagem superficial baseada em informações retiradas da Wikipédia demonstra pouco interesse em realmente oferecer uma formação antirracista e capaz de tratar do assunto no dia a dia escolar”, avalia.

Originalmente publicado no Brasil de Fato
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