Sobre a coroa arrancada no Miss Amazonas

Tudo ia bem até ir mal

Nunca vi muito sentido em eleger a mulher mais bonita, a melhor música do ano, o melhor filme, o melhor ator. E não é por mera antipatia: é que eu acho que tudo pode ser bacana ao seu modo. E pode haver milhares de melhores músicas do ano e melhores filmes, atores, pessoas. Sem falar que sempre achei cruel julgar a arte como algo tão compreensível a ponto de ser mensurável, julgável, classificável.

E em uma dessas seleções da “bela da vez”, o miss Amazonas 2015, eu tive a comprovação de que é sempre possível se surpreender com a humanidade. A vice-miss, inconformada com o segundo lugar, arrancou a coroa da campeã em plena cerimônia de premiação.

Quem viu o vídeo provavelmente percebeu a expressão de ódio da moça instantes antes do ataque de histeria. Não foi um ataque pensado, obviamente – foi o descontrole humano diante da derrota na mais absoluta evidência.

E – como julgar o outro é tentadoramente fácil – não faltaram juízes nas redes sociais: alguns condenando ferrenhamente a atitude da moça e outros – pasmem! – endeusando-a, como se o ataque de fúria fosse a atitude mais louvável do mundo.

O que ninguém lembrou – ou, se lembrou, não disse – é que a gente dificilmente aprende a perder. E quando digo “a gente”, refiro-me a mim e a você – a todos nós, que não estamos imunes da obrigação de sermos os melhores em tudo.

O mundo tem nos ensinado, a cada dia mais, a ganhar. As menores perdas são consideradas absolutos fracassos. Se você é abandonado, você é um fracassado. Você perdeu alguém. Se você não é aprovado no vestibular, é claro que você não serve para absolutamente nada na vida. Se você não está em forma – minha nossa! – você é um grandessíssemo inútil, com o rabo gordo pregado no sofá.

Quer dizer, não basta ser bom. É preciso ser bom em absolutamente tudo: o melhor do time, o melhor do escritório, o mais bonito, o mais culto, o mais gentil, o mais admirável. O mais.

Nem discussões as pessoas aceitam perder. Continuam debatendo, buscando mil e uma referências – fajutas, muitas vezes – porque ganhar é a palavra de ordem. No mundo dos likes e mil seguidores, o fracasso está fora de moda. As pessoas precisam te ver, te seguir, te likar, te amar – e as pessoas não amam perdedores.

A gente arranca coroas por aí quando critica aquele colega de trabalho que é mais valorizado que a gente; ou quando fala mal do ator por quem todas as mulheres vivem babando; ou quando não se conforma em ter argumentos derrotados em uma mísera discussão de boteco.

Quando estimulamos nossos filhos a ser o artilheiros do time, ou o mais notável da turma, ou o dono do melhor projeto da feira de ciências, estamos criando uma geração de grandes e bons arrancadores de coroas. Que simplesmente não aprenderam a conviver com o fracasso.

E pelo andar da carruagem – em que egos inflados por likes escondem mentes depressivas – o status continuará sendo nosso maior objetivo. E abriremos mão de sermos felizes para sermos amados (mesmo que por aquilo que não somos).

Honestamente, não me importo se ninguém me seguir. Ou se comentarem aí embaixo que eu escrevo mal, ou que sou até legal mas fulaninhx é melhor. Sabe do que mais? Existem centenas melhores que eu. E mais bonitos, e mais interessantes, e mais bem-sucedidos. É o curso da vida. Me resta me contentar em ser a melhor versão de mim mesma. Nessa geração em que o mundo só sabe nos pedir mais e mais, essa é a maneira mais digna de não enlouquecer.

Nathalí Macedo

Escritora, roteirista, militante feminista, mestranda em Cultura e Arte. Canta blues nas horas vagas.

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Nathalí Macedo

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