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Tinga, Feitiço, atitude e racismo no futebol

Tinga

 

O meio-campista Tinga, do Cruzeiro, reagiu de maneira equilibrada depois dos xingamentos perpetrados pela torcida peruana do Real Garcilaso. Um bando de boçais imitava macacos a cada vez que ele pegava na bola durante a partida (que terminou em 2 a 1 para o Real, aliás).

“Eu queria não ganhar todos os títulos da minha carreira e ganhar o título contra o preconceito contra esses atos racistas”, disse. “Infelizmente, aconteceu. Joguei vários anos na Alemanha e isso nunca aconteceu. Agora, em um país vizinho ao nosso, onde existem pessoas iguais a mim, acontece isso. Por mim, eu deixaria de ganhar qualquer título para que não houvesse mais desigualdade”.

Tinga poderia — e seria compreensível — ter perdido a cabeça. De uma maneira simples, porém, externou uma consternação diante daquele absurdo: se na Alemanha ele não passou por isso, como esse tipo de ofensa pode ter vindo de um país tão próximo ao nosso — e longe de ser ariano?

Bem, o racismo e a estupidez não têm fronteiras e estão entranhados no futebol. O tema tem sido tratado, com medidas mais ou menos paliativas, pela Fifa. É um problema antigo. Provavelmente faltem, também, jogadores mais combativos. Talvez falte atitude, de uma maneira geral.

No seu clássico “O Negro no Futebol Brasileiro”, o grande Mario Filho, maior cronista do esporte (que seu irmão Nelson Rodrigues chamou de “criador de multidões”), contou uma história exemplar.

Mario relata o surgimento do São Cristóvão nos anos 20. Segundo ele, naquele time, “os mulatos e os pretos sentiam-se mais mulatos e pretos, orgulhando-se disso”. Com esse espírito, o São Cristóvão sagrou-se campeão carioca em 1926.

E então ele fala de Feitiço, nascido Luís Macedo Matoso. Feitiço era centroavante do Santos na época, conhecido por suas cabeçadas e gols de bico.

Num jogo entre o escrete carioca e o escrete paulista em 13 de novembro de 1927, houve uma paralisação depois de um pênalti para o Rio de Janeiro. Presente ao estádio, o presidente Washington Luís, que não entendia nada, mandou da tribuna que a partida prosseguisse.

Feitiço não gostou da interferência. Embora não fosse o capitão, liderou a equipe em sua retirada de campo. Feitiço, um mulato que, de acordo com Mario, mal sabia rabiscar o nome na súmula, era o símbolo de uma nova postura.

No gramado, ele “estufava o peito, enpinava o queixo. Ia logo levantando os braços, apertando as mãos por cima da cabeça, como um boxeur depois de um knock-out, pedindo palmas, querendo mais palmas. Quanto mais palmas batiam para ele, mais ele corria em campo”. Feitiço ainda seria aclamado “Imperador do Foot-ball” pela imprensa britânica depois de uma vitória de 5 a 0 da seleção brasileira sobre a escocesa em 1928.

Talvez esteja faltando um pouco de Feitiço a Tinga e a tantos outros jogadores brasileiros vítimas de palhaços racistas. Sair de campo no primeiro guincho de símio ouvido na arquibancada é um começo — ainda que venha do presidente.

Feitiço
Kiko Nogueira

Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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