Nesta semana, o DCM noticiou a existência de uma Ação Direta de Incostitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra a Lei 17.557/22, que dispõe sobre a criação do Programa Estadual de Regularização de Terras do Governo de São Paulo.
A legislação, apoiada inicialmente por João Doria e em seguida por Rodrigo Garcia, autor do decreto de regulamentação, contraria os princípios da Constituição Federal ao beneficiar grileiros em posse de grandes extensões de áreas devolutas, em detrimento do restante da população, essencialmente a de média e baixa renda que busca num pedaço de terra não apenas o sustento, mas também moradia.
Paulo Niederle, da cadeira de sociologia rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, classificou a abofação do governador Tarcísio de Freitas em caminhar com um processo que ainda está em análise no STF como casuismo.
“Típico de um modo patrimonialista de pensar o Estado”, disse ele, “em que as relações públicas e privadas se confudem de tal modo que os dispositivos institucionais são utilizados em benefício daqueles grupos privados e famílias que mantêm relações próximas com os governos”.
Especialista em questões agrárias e luta pela terra, Niederle falou com o DCM:
Afinal, quais critérios são utilizados para a seleção e distribuição de terras no Brasil?
Niederle – O governo Bolsonaro destruiu com todo o aparato de políticas públicas voltadas à realização da reforma agrária, seja no que diz respeito à criação e manutenção de assentamentos, seja com relação a outras questões que poderiam garantir a permanência dos pequenos produtores, comunidades tradicionais e povos indígenas nos seus territórios.
O desafio atual é reorganizar esse aparato e, ao mesmo tempo, inovar na construção de políticas que favoreçam principalmente a produção de alimentos básicos, para que o Brasil possa novamente vencer a tragédia da fome que afeta 33 milhões de pessoas.
O que a Constituição diz a esse respeito?
No seu artigo 186, estabelece a função social da propriedade rural, a qual é cumprida quando, simultaneamente, se atende a critérios de aproveitamento racional e adequado, preservação do meio ambiente, observância das disposições que regulam as relações de trabalho, e o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Infelizmente, o debate historicamente se concentrou quase exclusivamente nos índices de produtividade agropecuária (a questão do latifúndio improdutivo).
Somente mais recentemente temas como relações de trabalho e preservação ambiental entraram na discussão, mas com efeitos ainda muito limitados quando se trata de desapropriação para reforma agrária.
Que impactos na redução da pobreza e desigualdades uma reforma agrária pode ter?
De maneira direta, pelo seu impacto na desconcentração da riqueza e na garantia de condições dignas de vida para pessoas que foram expulsas de suas terras ou tiveram que sair do meio rural em função da impossibilidade de garantir o sustento da família (no caso dos minifúndios).
De maneira indireta, pelo modo como uma reforma agrária focada na produção de alimentos agroecológicos pode contribuir com toda a sociedade por meio da redução da inflação dos alimentos e ampliação das condições de acesso a alimentos saudáveis.
E como as lideranças agrícolas reagem a esse tipo de abordagem?
Como mencionei, a principal discussão sempre focalizou os índices de produtividade, os quais têm como referência o Censo Agropecuário de 1975.
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Apesar do agro se dizer moderno e tecnológico, as organizações patronais e empresariais nunca aceitaram revisar esses índices. Infelizmente, a correlação de forças no Congresso dificilmente permitirá avançar neste sentido nos próximos anos.
Outra discussão fundamental diz respeito ao ITR, que é o imposto relativo à propriedade da terra.
Enquanto o IPTU tem um peso significativo no orçamento das pessoas que moram nas cidades, o ITR é um tributo ridiculamente baixo, para não dizer inexistente. Isso permite que grandes proprietários mantenham suas terras improdutivas lucrando apenas com a especulação em virtude da elevação dos preços.
Qual medida seria necessária para corrigir essa distorção?
A revisão do ITR, isentando definitivamente as pequenas propriedades, mas taxando as grandes. É a melhor forma de estimular a desconcentração da terra e da riqueza.
Faixas de isenção e taxação também poderiam variar de acordo com o tipo de uso da terra, favorecendo as práticas de manejo sustentável.
Qual o real papel da agricultura familiar e como ela pode contribuir na produção de alimentos?
A agricultura familiar e camponesa, incluindo os assentamentos rurais, podem ter um papel estratégico na produção de alimentos básicos.
Melhor ainda se isso se der por meio de práticas sustentáveis, saudáveis e justas, como se expressa na agroecologia.
Portanto, é urgente retomar programas para incentivar esse tipo de produção. Mas isso não será suficiente.
Pelo menos outras duas iniciativas terão que acompanhar esse esforço. Primeiro, apoiar novos sistemas de distribuição, favorecendo para que esses alimentos cheguem principalmente nas periferias das grandes cidades, onde está a maior parte da população vulnerabilizada.
Segundo, limitar a expansão violenta de práticas insustentáveis, notadamente a expansão de comodities como a soja e a cana de açúcar, as quais estão tomando conta das áreas de produção de alimentos.
Isso somente acontecerá se as próprias políticas públicas contribuírem para desincentivar essa expansão.
E os assentamentos, como é possível realizá-los?
Além das políticas mais tradicionais de crédito, extensão rural, compras públicas e garantia de preços, é urgente inovar em programas que vinculem a produção dessas áreas não apenas à agenda da alimentação saudável, como já mencionado, mas também ao tema das mudanças climáticas.
Infelizmente, estamos muito atrasados nessa discussão no Brasil.
Os assentamentos de reforma agrária, as terras indígenas e os territórios das comunidades tradicionais podem ter uma contribuição fundamental para estruturar propostas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
Para tanto, será necessário construir instrumentos que reconheçam e promovam esse potencial.
Se o Estado não atuar rapidamente neste sentido, ficaremos reféns de instrumentos privados de mercado, à exemplo da comercialização de créditos de carbono, que serão apropriados apenas pelas grandes empresas e produtores.
A reforma agrária está relacionada à preservação dos direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais?
Pensamos em reforma agrária apenas na perspectiva de uma política de assentamentos.
No entanto, a questão diz respeito a todos os aspectos que afetam a estrutura agrária e, hoje em dia, conecta-se a toda dinâmica do sistema agroalimentar.
A meu ver, a população brasileira ainda não entende que a crise alimentar atual é decorrência direta da concentração da terra, porque é isso que viabiliza seu uso predatório e especulativo, em detrimento da produção de alimentos.
Avançar na reforma agrária implica necessariamente nesse diálogo com a população urbana, sobretudo nas periferias.
Mas esse diálogo somente acontecerá se os próprios alimentos oriundos dos assentamentos, da agricultura familiar e das comunidades tradicionais e originárias chegarem até essa população.
O alimento é o elo para avançar politicamente na construção de uma ampla coalizão social em defesa da reforma agrária e em várias outras pautas urgentes.
O governo Lula está preparado para enfrentar a batalha por uma melhor distribuição de terras no Brasil?
Do ponto de vista político, o fato é que a coalizão hegemônica no Congresso Nacional está direta ou indiretamente vinculada ao poder das organizações do agro, o que se expressa de maneira evidente na força da Frente Parlamentar Agropecuária.
O governo terá muita dificuldade para aprovar qualquer coisa no congresso se não negociar com esses grupos.
Com relação aos obstáculos econômicos, o próprio preço elevado da terra dificulta a retomada de um programa de desapropriações com indenização.
Em face disso, talvez seja preciso avançar em novos mecanismos que recuperem terras públicas ilegalmente ocupadas e por meio da desapropriação sem indenização de terras oriundas de propriedades que possuem dívidas com a União ou cometeram crimes relacionados às condições de trabalho escravo contemporâneo, por exemplo.