Artigo 316 do CPP e a reavaliação da prisão preventiva: vem aí o panconstitucionalismo. Por Lenio Streck

Atualizado em 12 de novembro de 2020 às 8:50
Ministro Marco Aurélio Mello
Imagem: SCO-STF

Originalmente publicado em CONJUR

Por Lenio Streck

1. De como uma decisão derruba bibliotecas e leis
Nos meus tempos de faculdade dizia-se: uma lei derruba bibliotecas inteiras; hoje se pode dizer: uma decisão judicial derruba não somente as bibliotecas, mas também as próprias leis! Ou seja: Uma árvore faz mil palitos de fósforo. Um palito queima mil árvores.

2. O parágrafo único do artigo 316 do CPP: Por qual razão um texto legislativo não deve ser lido em seu contrário
Ainda preferindo pecar pelo excesso — daí a minha epistemologia do zelo — trago uma tese de Christian Baldus (introduzido e estudado no Brasil por Otavio Luiz Rodrigues Jr) sobre interpretação histórica negativa:

determinado comando ou certa hipótese de incidência não são aceitáveis ou compreensíveis porque o legislador, se os desejasse, tê-los-ia incluído no texto de lei.

Aparentemente resolvido, assim esperamos, o problema da impossibilidade de o juiz decretar prisão de ofício – a posição do Ministro Ribeiro Dantas, do STJ, na linha da Segunda Turma do STF – parece indicar uma pacificação hermenêutica sobre os artigos 311 e 310, II – , seja diretamente, seja por conversão, resta o imbróglio do parágrafo único do artigo 316.

3. O panconstitucionalismo: qual é o limite de uma ADI?

Vejo que a AMB ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o parágrafo único do artigo 316 do CPP.

Interessante é saber: uma inconstitucionalidade deve ter parametricidade, isto é, uma lei deve “bater contra” a Constituição, correto?

Então, por que o parágrafo único do artigo 316 do CPP seria inconstitucional?

Está-se, assim, em face de uma nova invenção brasileira: o panconstitucionalismo. Ou meta-inconstitucionalidade.

Já tínhamos o pamprincipiologismo. Agora tem-se que “inconstitucional é aquilo que se diz que é”, em uma clara manifestação de realismo jurídico.

Na verdade, o Brasil consegue pegar uma tese que tem o nítido escopo progressista no seu nascedouro (o realismo jurídico norte-americano e escandinavo) e transformá-lo em uma tese reacionária. Isso também foi feito com a ponderação alexiana.

Espero que o Supremo Tribunal, a despeito de já ter feito uma – inadequada – redefinição do sentido do dispositivo do aludido parágrafo único do art. 316, não ande mais longe e vá dizer que o parágrafo ofende a Constituição.

Com o devido respeito, sustentar que é inconstitucional um dispositivo que inquina de nulidade a falta de fundamentação para uma prisão, é fazer pan(in)constitucionalismo. Ou um neoinconstitucionalismo.

Negar tradições e a própria ciência é coisa da moda. Por isso, minha advertência: O dispositivo em tela pode ser tudo, menos inconstitucional.

Como diz Gadamer, um texto religioso deve ser interpretado como tendo uma pretensão “redentora”. Já um texto jurídico deve ser interpretado a partir de sua situação hermenêutica. Por se tratar de garantia, o aludido texto não pode ser tratado como se fosse uma antigarantia.

Há limites — pelo menos assim se estuda na hermenêutica — na interpretação. Caso contrário, teremos que concordar que “interpretar é dar às palavras o sentido que se quer”.

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PS: Marco Aurélio foi criticado por decisão em que cumpriu a lei, recentemente.