Será preciso uma hiperinflação para a destituição de Bolsonaro? Por José Carlos de Assis

Atualizado em 16 de outubro de 2021 às 11:29
Bolsonaro Planalto Haia
Jair Bolsonaro. Foto: Sérgio Lima/AFP

Por José Carlos de Assis

Diz o provérbio que ninguém é profeta em sua própria terra. Nos últimos dias tenho insistido em profecias que nunca se cumprem. Meu amigo dileto, o mais erudito dos economistas brasileiros, Luiz Gonzaga Belluzzo, teme que eu esteja colocando em risco minha credibilidade. Anunciei a derrocada das moedas virtuais, e isso ainda não aconteceu. Anunciei a derrocada do próprio sistema financeiro mundial, e ele parece continuar aí, perfeitamente equilibrado. Anunciei a hiperinflação, e o máximo que aconteceu é que a inflação superou a barreira psicológica dos 10% anuais!

Será que Belluzzo tem razão, e que, de fato, estou expondo à execração pública a minha credibilidade? Comecemos pela definição da palavra “profeta”. Ela não se refere àqueles impetuosos guardiães da moral e da ética públicas que anunciavam, no Velho Testamento bíblico, o que estava por vir como inevitabilidade. Eles se dirigiam aos contemporâneos, principalmente a reis e líderes, para que mudassem seu comportamento a fim de que coisas futuras terríveis não acontecessem para eles e para o conjunto do povo. Eram advertências. Não profecias no sentido moderno.

Minha intenção, no caso do anúncio da derrocada financeira mundial, era sensibilizar nossos grandes bancos para que o sistema bancário interno e a própria economia sejam isolados da crise externa, evitando consequências desastrosas para o povo em termos de perdas de milhões de empregos e bilhões em rendas. Sobre isso recebi uma mensagem “tranquilizadora” de Carlos Cosenza, economista, meu irmão intelectual da Coppe/UFRJ. Cosenza decididamente não estava preocupado com os grandes bancos, como eu. Tinha outro foco. Eis o que disse:

“Os bancos já estão salvos.  A devolução dos compulsórios,  para “emprestar” para pequenos e médios empresários, serviu para os bancos rasparem o mercado de câmbio. Desvalorizar o real, tornar o Brasil mais barato, aumentar os lucros em reais para quem tem depósitos no exterior, escalar na inflação gerando excedentes do consumo para exportar, provocando o verdadeiro desequilíbrio inflacionário que é a redução da oferta interna em relação à demanda. Trama do Guedes com os bancos”, finalizou Cosenza. Com isso, dei por encerrados meus esforços de salvar os bancos.

Mas é preciso salvar o povo do caos inflacionário. É que o povo será o maior sacrificado na hipótese de uma aceleração da inflação gerando uma hiper! Contudo, só é possível evitar a hiperinflação de amanhã se a previrmos hoje. É o que tenho feito, contra a opinião quase unânime de todos os economistas convencionais, que ainda falam numa inflação tolerável. Estão redondamente enganados. Estamos em marcha forçada para a hiper. É uma determinação matemática, conhecida como equação não linear, da forma y = x.y. No caso, y = x.y.z mais quatro variáveis, pelas que contei. 

Uma equação linear é do tipo:  y = c.x, onde c é uma constante e x é uma variável. Por exemplo, se a inflação, variável dependente, dependesse apenas da duplicação do preço de um produto x, variável independente, então  y, a inflação, seria igual a duas vezes o preço de x, e pronto. Já numa equação não linear  y, a inflação depende de mais de uma variável independente:  o câmbio, o preço dos combustíveis (diesel, gasolina, gás de cozinha), da energia elétrica; e da própria inflação passada, porque a economia brasileira é generalizadamente indexada, formal e informalmente.

Em resumo, como a inflação é o resultado da interação entre variáveis independentes, e umas influem sobre as outras recorrentemente, não há como estabilizar os preços. Por exemplo: o preço da energia elétrica reflete o preço do óleo combustível determinado independentemente pela Petrobrás, segundo uma fórmula arbitrária; o preço do óleo depende do câmbio, fixado independentemente pelo Banco Central; o preço do câmbio, por sua vez, reflete a inflação passada; a taxa de juros, por sua vez, é fixada pelo BC segundo a percepção do mercado de todas essas interações.

Com isso, a inflação vai num crescendo, e nada consegue estabilizá-la, porque umas variáveis atuam sobre as outras recorrentemente, para frente e para trás, umas reproduzindo comportamentos passados em relação a preços, e outras antecipando preços futuros. No limite, é o caos hiperinflacionário!  Então você perguntaria, como a Rainha da Inglaterra perguntou aos economistas do mundo na catastrófica crise financeira de 2007/2008: “Mas ninguém previu isto?” Se tivessem previsto, talvez pudesse ter sido evitada mediante uma ação correta e eficaz.

Mas por quê aparentemente só eu, não outros economistas, estou falando na possibilidade de uma hiper a curto prazo? Estaria pondo minha credibilidade em xeque gratuitamente?  A razão é simples. Há três espécies de inflação. Os economistas convencionais e de livro texto só veem duas, eu vejo uma terceira. Eles veem inflação de mercado, quando há desequilíbrio entre oferta e demanda real, e inflação monetária, quando há desequilíbrio entre fluxos monetários e fluxos produtivos (economia real). Eu vejo uma terceira: a inflação indexada, ou dos contratos.

É uma velha conhecida da economia brasileira dos anos 80 e meados dos 90: a economia generalizadamente indexada. Salários corrigidos automaticamente, preços corrigidos automaticamente, câmbio desvalorizado automaticamente, juros subindo automaticamente. Tudo sobe, nada pára. No fim do governo Saney, a inflação estava em 80% ao mês. Era um espanto. Entretanto, as pessoas viviam e os prédios continuavam de pé. É a característica da híper indexada, assim como o uso recorrente do ópio é uma forma de sobrevivência dos viciados.

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A demanda está esmagada pela política monetária e fiscal de Guedes e Bolsonaro

Por quê então estaria eu anunciando a hiperinflação com tanta insistência? Será porque ela vai acontecer inexoravelmente? Não. É porque eu, assim como qualquer economista que saiba distinguir uma equação linear de uma equação não linear,  tenho a fórmula simples para parar de uma porrada com a inflação brasileira: basta fixar numa data do tempo, por exemplo, o mês em que o entreguista Pedro Parente começou a aplicar a fórmula de reajuste automático de preços dos combustíveis da Petrobrás e recorrer até eles todos os preços públicos.

Isso, na prática, seria voltar com os preços dos combustíveis, da energia elétrica, do câmbio e com a taxa básica de juros aos níveis de 2016, o ano do golpe contra Dilma Roussef. Os preços privados, sobretudo de monopólios e oligopólios, progressivamente se alinhariam a eles na medida em que seus custos cairiam abruptamente. A concorrência se encarregaria de estabilizar os preços nos outros mercados, na medida em que o governo atuasse firmemente no sentido de recorrer a estoques reguladores para nivelar oferta e demanda no mercado real.

A curto prazo não haveria possibilidade alguma de desequilíbrio inflacionário. A demanda está esmagada pela política monetária e fiscal de Guedes/Bolsonaro, e os estoques de produtos estão invendáveis hoje. A médio prazo, o mercado poderia ser equilibrado por estímulos a importações e desestímulos a exportações bancados circunstancialmente pelas reservas cambiais. A longo prazo, o planejamento governamental se encarregaria de equilibrar o financiamento do investimento público em infraestrutura com a produção de bens de consumo populares.

Como tudo isso poderia ser equacionado? Sem maiores dificuldades: dentro das negociações de um Pacto Social que precedesse um Pacto Político, pelos quais me tenho batido. E quanto ao Pacto Político? A preliminar indispensável é a destituição de Bolsonaro, de Guedes e de Roberto Campos, estes dois últimos controladores da política econômica – a qual, sabemos agora com absoluta convicção, está a serviço deles, e não do povo. E quanto à destituição de Bolsonaro? Um processo de impeachment de duração de seis meses? Seria simplesmente insuportável.

Entretanto, não é preciso ser jurista para encontrar um caminho mais célere para a destituição do Presidente. A Procuradoria Geral da República e o Supremo Tribunal Federal só não o fizeram ainda por absolta desídia. Bolsonaro violou a Constituição em discursos públicos para milhões de brasileiros. É réu confesso de crime de responsabilidade, mesmo sem falar em Covid. A PGR não precisa de apurar em inquérito o que foi confessado de público, isto é, a desobediência de Bolsonaro ao Supremo. E ao Supremo só falta colocar a ação em pauta e julgar, para alívio da nação.

Dizia Pitigrilli, o grande humorista italiano radicado na Argentina, que livros (e artigos) são irrelevantes. A maioria não toma conhecimento deles. Metade dos que tomam, não os lê. Metade dos que leem, não os entende. Metade dos que entendem, não concorda. E a metade dos que concordam é irrelevante. Assim acho que tem acontecido com meus artigos mais recentes em que trato de hiperinflação. Ninguém leva a sério. Sobretudo quando publico na internet, a linguagem dos toques rápidos. A não ser quando viraliza. Aí, amigos, sai de baixo. Mas tem que ter mulher nua!

J. Carlos de Assis
Economista, doutor em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)[2] e autor de mais de 20 livros.