O mundo de Paulo Vanzolini era outro

O zoólogo, autor de Ronda, sempre considerou a música um hobby — e está aí boa parte de sua grandeza.

Vanzolini

Paulo Vanzolini é um símbolo de um mundo que acabou. O compositor paulistano, morto aos 89 anos, era a antiestrela, um zoólogo que considerava a música um hobby. Um amador, no melhor sentido. Nunca levou muito a sério sua vocação artística, o que fez dele uma figura sui generis num universo repleto de cantores filósofos ou cabeças ocas.

Trabalhou até o fim da vida, de segunda a sábado. “É a única coisa de que gosto, a única coisa que sei fazer. Um dia eu nasci e já era zoólogo”, disse. No ano passado, ganhou uma bolsa de 300 mil reais. Ajudou a criar a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e aumentou a coleção de répteis do Museu de Zoologia da USP de 1 200 para 230 mil exemplares. Fez expedições na Amazônia. Assim como na música, você nunca o veria se gabando de suas conquistas científicas. Mais low profile, impossível.

Desafinado, precisava da ajuda dos amigos profissionais para compor. Era um boêmio tradicional. Fez Volta Por Cima e a melancólica, linda Ronda, o hino paulistano por excelência para uma cidade que Vinicius de Moraes definiu como túmulo do samba. Vanzolini não gostava de Ronda, a considerava piegas. “É história de uma prostituta que vai matar o amante”, afirmava. É muito mais do que isso, naturalmente.

Ronda é fruto das noites de Vanzolini, um retrato do wild side de Sampa quando ninguém ousava usar esse apelido. Jamais abandonou a cerveja. Gastou seus últimos sábados no Bar do Alemão, na Água Branca, vendo a mulher, Ana Bernardo, cantar até de madrugada. Sempre que lhe cobravam novas composições, dizia que perdera a vontade por causa da falta dos amigos que morreram. “Não seria a mesma coisa. Estariam faltando os antigos e insubstituíveis companheiros”.

“Não sei  qual foi o filósofo, se Sólon ou Thales, que disse só ser possível julgar se uma pessoa foi feliz ou não depois de sua morte, porque é imprescindível ter uma morte feliz também”, disse.

Com Paulo Vanzolini, vai-se uma cidade menor, mais generosa, misteriosa e poética.

Kiko Nogueira

Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

Disqus Comments Loading...
Share
Published by
Kiko Nogueira

Recent Posts

VÍDEO – Cavalos escapam de Buckingham, armam arruaça nas ruas de Londres e ferem 4 pessoas

Dois cavalos fugiram do Palácio de Buckingham, percorrendo uma distância de pelo menos 8 km…

37 minutos ago

VÍDEO: Supremacistas pregando contra minorias marcham livres, leves e soltos em Charleston (EUA)

Membros da organização de extrema-direita Patriot Front marcham neste sábado (27) em Charleston, na Virgínia…

2 horas ago

VÍDEO – Alvo de chacota: como foi ‘carreata fantasma’ de Bolsonaro em Acaraju

A passagem de Jair Bolsonaro em Acaraju, Sergipe, viralizou de forma negativa nas redes sociais.…

5 horas ago

Sobrinho de socialite acusa suposto marido de roubar joias, tapetes persas e obras de arte

A socialite Regina Gonçalves, de 88 anos, voltou ao seu apartamento no Edifício Chopin, em…

6 horas ago

Pousadas da empresa dona da pensão que pegou fogo em Porto Alegre têm cheiro forte e lixo pelo local

O incêndio que resultou na morte de 10 pessoas na madrugada de sexta-feira (26) em…

7 horas ago

Membros do STF, STJ e PGR emendam feriado em viagem à Europa

Uma comitiva formada pelos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF),…

7 horas ago