Contratar serviços espirituais para provocar a morte de alguém não configura crime de ameaça, define STJ

Atualizado em 13 de junho de 2023 às 12:49
Fachada do edifício sede do Superior Tribunal de Justiça (STJ)

Eduardo Reina

A contratação de serviços espirituais de uma mãe de santo para provocar a morte de autoridade policial, promotor de justiça, vereador, prefeito e repórter investigativo não configurou crime de ameaça. Esta é a decisão unânime da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em ação originada na cidade de São Simão, em Goiás, e cuja relatoria em Brasília foi da ministra Laurita Vaz.

“O delito de ameaça somente pode ser cometido dolosamente, ou seja, deve estar configurada a intenção do agente de provocar medo na vítima. Na hipótese dos autos, a representação policial e a peça acusatória deixaram de apontar conduta da paciente direcionada a causar temor nas vítimas, uma vez que não há no caderno processual nenhum indício de que a profissional contratada para realizar o trabalho espiritual procurou um dos ofendidos, a mando da paciente, com o propósito de atemorizá-los. Não houve nenhuma menção a respeito da intenção em infundir temor, mas tão somente foi narrada a contratação de trabalho espiritual visando a ‘eliminar diversas pessoas’”, destaca a decisão da 6ª Turma do STJ.

“Dos elementos colhidos não ficou demonstrado que a Paciente, ora Ré: ‘teve a vontade livre e consciente de intimidar os ofendidos: a conduta dela consistiu em contratar uma ‘profissional especializada’ que trabalha com esse tipo serviço – que se pode denominar de metafísico -, a fim de que fosse causado mal grave e injusto aos ofendidos”.

Para Laurita Vaz, “inexiste ameaça quando o mal anunciado é improvável, isto é, liga-se a crendices, sortilégios e fatos impossíveis de demonstrar cientificamente. Por outro lado, é indispensável que o ofendido com efetividade se sinta ameaçado, acreditando que algo de mal lhe pode acontecer; por pior que seja a intimidação, se ela não for levada a sério pelo destinatário, de modo a abalar-lhe a tranquilidade de espírito e a sensação de segurança e liberdade, não se pode ter por configurada a infração penal. Afinal, o bem jurídico protegido não foi abalado”.

O crime de ameaça, prossegue o voto da relatora, “deve ter potencialidade de concretização, sob a perspectiva da ciência e do homem médio, situação também não demonstrada no caso”. Diante do contexto, “a instauração do inquérito policial, e as medidas cautelares determinadas, bem como a ação penal, porquanto baseadas em fato atípico (ameaça), são nulas, e consequentemente a imputação pela prática do crime previsto no art. 241-B, c.c. o art. 241-E, ambos da Lei n. 8.069/1990”.

A relatora da 6ª Turma do STJ concedeu habeas corpus para, “acolhido o parecer do Ministério Público Federal, trancar a ação penal ajuizada em desfavor da Paciente, com anulação do inquérito policial e das medidas de busca e apreensão, quebra do sigilo telefônico e suspensão do exercício das funções públicas”.

O caso

O prefeito do município de São Simão estava sendo investigado por crimes de assédio e estupro de menor de idade. Chegou a ser preso e afastado temporariamente do posto.

A sobrinha do prefeito, também secretária de Saúde da cidade, procurou então uma mulher que fazia trabalhos espirituais e magia negra com o objetivo de provocar a morte das autoridades que investigavam o crime: o delegado de polícia, o promotor de justiça, o presidente da Câmara de Vereadores e de um jornalista que realizou a cobertura noticiosa dos supostos crimes praticados pelo prefeito.

Para a mãe de santo, a sobrinha do prefeito pagou R$ 5 mil.

Entretanto, logo depois de ter recebido o pagamento para realizar os rituais místicos, a mãe de santo procurou o jornalista alvo do trabalho e contou toda a situação. Depois, para a polícia, essa mulher alegou ter muita consideração pelo profissional de imprensa, o que a impedia de fazer qualquer ritual que o afetasse. Também argumentou que somente concordou com o pedido da sobrinha do prefeito para conhecer todo o plano e depois delatá-la.

A mãe de santo realizou vários encontros com a sobrinha do prefeito. Nessas reuniões chegou a gravar as conversas. Depois entregou os áudios e transcrições das conversas para o jornalista.
Por sua vez, o repórter foi até a delegacia de polícia e registrou um boletim de ocorrência por crime de ameaça, expondo toda a situação. Ação judicial foi desenvolvida.

Em meio as acusações pelo Ministério Público e investigações policiais, a Justiça de Goiás determinou busca e apreensão na residência da secretária de Saúde, além da quebra do sigilo telefônico dela.

Uma perícia técnica encontrou fotografia de uma adolescente nua no arquivo do telefone apreendido.

“Efetivada a busca e apreensão dos dispositivos móveis, e analisados os dados neles constantes, ‘foram encontradas, além de fotos das vítimas das ameaças narradas anteriormente, fotografias pornográficas envolvendo M.O.N.’”, mostra o relatório do STJ.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra a sobrinha do prefeito pelos crimes de ameaça e por armazenamento de fotografia contendo cena pornográfica de adolescente, em concurso material.

A ação foi parar no STJ, que considerou o fato atípico, alegando que o delito de ameaça só pode ser cometido dolosamente. O que significa que deve estar configurada a intenção do agente de provocar medo na vítima.

E no caso concreto na cidade de São Simão, no entender da corte, não houve nenhuma conduta da sobrinha do prefeito direcionada a causar temor nas vítimas. E que a acusação não demonstrou que a ré teve a vontade livre e consciente de intimidar os ofendidos.

O STJ entendeu que a conduta da sobrinha do prefeito foi de apenas contratar uma “profissional especializada” que trabalha com esse tipo serviço místico, que se pode denominar de metafísico; e cujo objetivo foi causar mal grave e injusto aos ofendidos.

Além disso, o tipo penal do artigo 147 do Código Penal, ao definir o delito de ameaça, descreve que o mal prometido deve ser injusto e grave, ou seja, deve ser sério e verossímil. Assim, a ameaça pretendida deve ter potencialidade de concretização, sob a perspectiva da ciência e do homem médio, situação também não demonstrada no caso.

HC em Goiás

A defesa da acusada ingressou com habeas corpus no Tribunal de Justiça de Goiás. Alegou que a cliente estaria sofrendo constrangimento ilegal porque a investigação policial foi deflagrada por autoridade policial suspeita, tendo em vista que o próprio delegado figura como vítima dos fatos em investigação. E que nunca houve qualquer declaração pública da acusada que pudesse ser enquadrada no crime de ameaça.

O TJ-GO não concedeu o HC. Assim, foi impetrado novo habeas corpus, mas no STJ.
E no dia 7 de março, a relatora Laurita Vaz concedeu habeas corpus à sobrinha do prefeito, seguida pelos outros integrantes da 6ª Turma:
“Ordem de habeas corpus concedida para, acolhido o parecer do Ministério Público Federal, trancar a ação penal ajuizada em desfavor da Paciente, com anulação do inquérito policial e das medidas de busca e apreensão, quebra do sigilo telefônico e suspensão do exercício das funções públicas”.

Para o advogado André Matheus, do escritório Flora Matheus e Mangabeira Sociedade de Advogados, “a decisão da 6ª turma do STJ é acertada ao deferir a ordem em Habeas Corpus, pois como é conhecido pela doutrina e jurisprudência o verbo núcleo do tipo é ‘ameaçar’. Assim, pressupõe um constrangimento moral, uma coação psíquica, em outras palavras, a promessa de causar um mal injusto a vítima. A doutrina entende que quaisquer meios são eficazes para ameaça, como carta, mensagem via internet, desenhos, colocação de uma faca cravada defronte a casa da vítima, ameaçar por gestos etc.”.

No caso parece não ter comprovada a menção de causar mal injusto as supostas vítimas, diz Matheus, demostrando ausência de dolo de ameaçar. Além disso, prossegue o advogado, caso fosse levado adiante a empreitada “estaríamos diante de um crime impossível, impossibilidade de conclusão do ato ilícito, ou seja, a pessoa utiliza meio ineficaz ou volta-se contra objetos impróprios, o que torna impossível a consumação do crime”.

Diferente de outro entendimento da mesma turma para outro caso, no Recurso Especial 1299021-SP, no qual, reconheceu que a extorsão poderia ser praticada pela ameaça de causar um mal espiritual na vítima. A razão a época era que, dependendo do caso concreto, pela adesão cultural da vítima a certos preceitos religiosos a ameaça de causar uma mal espiritual poderia se revelar idônea e atemorizar a vítima.
HABEAS CORPUS Nº 697581 – GO (2021/0315424-2)

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