Em pedido de fim de inquérito contra advogado, MPF escracha governo e seus “arroubos antidemocráticos”

Atualizado em 22 de janeiro de 2021 às 1:59
André Luiz de Almeida Mendonça ao lado de Jair Bolsonaro: cara de um, focinho do outro (Crédito: reprodução/Youtube)

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Na última quinta-feira (21), o MPF (Ministério Público Federal) manifestou-se pelo arquivamento de um inquérito policial federal aberto a pedido do Ministério da Justiça. O feito apura a conduta de um advogado, Marcelo Feller, que fez críticas abertas ao presidente da República e seu governo, no canal de televisão CNN.

O Ministério da Justiça enxergou conduta típica (ato criminoso) do causídico conforme descrita na Lei de Segurança Nacional, norma número 7.170 de 1983 e ainda em vigor no país. Em seu art. 1º, incisos II e III, está escrito que é crime “lesar ou expor a perigo de lesão o regime democrático e a pessoa do Presidente da República”.

Como se nota, da forma como enxergam a Lei e o Sistema de Justiça o presidente da República e o seu ministro da Justiça, um advogado que vai a um programa de TV em uma emissora que sequer tem grande audiência e por lá expõe opiniões a respeito de assuntos públicos e em pauta na agenda nacional, apenas com isso tem o condão de “lesar ou expor a perigo o regime democrático e a pessoa do presidente”. Quão frágeis podem ser o regime democrático e a pessoa do presidente?

Uma interpretação assim perturbada dos sistemas de pesos e contrapesos que balanceiam toda a sociedade, com tendência anormal a pender para o autoritarismo cômico, não passou despercebida pelo Ministério Público Federal, chamado ao processo para manifestar-se sobre a conveniência e continuidade ou arquivamento do inquérito.

Obviamente, o entendimento técnico do parquet foi pelo imediato arquivamento do feito. Afinal, não se pode, a fim de não “lesar o regime democrático”, assassinar o regime democrático, que é o que se faz quando se começa a calar vozes discordantes com base na Lei de Segurança Nacional. É como jogar fora o bebê com a água do banho. Ou não é?

A lógica é óbvia e pueril, mas o procurador federal no DF João Gabriel Morais de Queiroz, que assina a manifestação do MPF, sabe com que tipo de governo e gente está lidando, às vezes lhes escapam coisas. Então, ele resolveu passar algumas lições básicas de boas maneiras democráticas ao senhor ministro da Justiça. Em documento público e oficial.

Lição Número 1: Não use a Lei de Segurança Nacional para tentar calar opositores

Apesar dos arroubos antidemocráticos e da proliferação de defensores da ditadura observada nesses últimos anos, (ainda) vivemos, no Brasil, um sistema democrático de direito e, portanto, é com base nesse contexto democrático que a LSN deve ser interpretada e aplicada.

Dessa forma, a LSN não pode ser empregada com o objetivo de constranger ou perseguir qualquer pessoa que se oponha licitamente, externando críticas ou opiniões desfavoráveis, ao governo, por mais ásperas que elas sejam, uma vez que tais condutas, por si só, não põem em risco a segurança do Estado, ainda que possam trazer
descrédito aos seus governantes por meio da contraposição de ideias e argumentos.

Crédito: MPF/DF

Lição Número 2: Palavras não colocam a democracia ou o presidente em risco

Para a configuração desse crime, é imprescindível, além da motivação e dos objetivos políticos do agente, que tenha ocorrido lesão ou posto em risco os bens jurídicos indicados.

Deve-se ter em mente, portanto, que a aplicação da lei de segurança nacional, como instrumento de defesa do Estado, tem de estar reservada para aqueles casos extremos em que há realmente o propósito de atentar contra a segurança do Estado e uma certa potencialidade de verdadeiramente atingi-la, o que não se observa no caso.

Lição Número 3: Se o presidente não quer ser desrespeitado, que dê-se ao respeito

É necessário ter-se em mente, ainda, o contexto fático e político no qual foram veiculadas as afirmações do investigado, marcados por uma acentuada polarização política, em grande parte incentivada pelo próprio presidente da República, e em meio a uma pandemia que já matou mais de 210.000 pessoas apenas no Brasil, em menos de um ano.

É importante lembrar a sempre atual lição do eminente Ministro Carlos Britto que, ao julgar a ADPF 130, asseverou que:

Todo agente público está sob permanente vigília da cidadania. E quando o agente estatal não prima por todas as aparências de legalidade e legitimidade no seu atuar oficial, atrai contra si mais fortes suspeitas de um comportamento antijurídico francamente sindicável pelos cidadãos.