Equipe de Didier Raoult denuncia que ele falsificou resultados de testes com hidroxicloroquina

Atualizado em 27 de novembro de 2021 às 9:26
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Segundo reportagem do site investigativo Mediapart, Raoult adulterou programa de analise de testes PCR para favorecer resultados da hidroxicloroquina à Covid-19

Uma reportagem publicada na última sexta-feira (19) na imprensa francesa afirma que o professor Didier Raoult falsificou os resultados de testes com hidroxicloroquina para a Covid-19. “O índice de positividade de testes PCR foi modificado, transformando em negativos o maior número de resultados dos pacientes tratados em Marselha (onde trabalha o médico) e permitindo, desse modo, concluir o efeito benéfico da hidroxicloroquina”, afirma o site investigativo Mediapart.

A publicação relata ter obtido um relatório com depoimentos de pelo menos dez membros do laboratório dirigido pelo médico em investigações das autoridades francesas. Eles seriam biólogos, médicos, residentes e assistentes, ouvidos no último mês de outubro pelo Inserm (instituto nacional de saúde e da pesquisa médica), AP-HM (rede de hospitais públicos de Marselha), IRD (instituto para pesquisa e desenvolvimento) e Universidade Aix-Marseille, onde Raoult se aposentou do cargo de professor. De acordo com o Mediapart, as equipes relatam “práticas científicas e éticas lamentáveis”.

Segundo o site francês, os depoentes solicitaram anonimato e os relatos duraram pelo menos uma hora. “Dois grupos de pacientes foram analisados com critérios diferentes para permitir concluir falsamente a eficácia da hidroxicloroquina”, diz a reportagem. “Não há realmente ciência por trás das publicações do IHU (laboratório dirigido por Raoult) há anos”, teria afirmado um dos médicos ouvidos.

“A estratégia era a seguinte: para os pacientes de Marselha, o valor do teste de detecção do vírus por PCR foi reduzido a 34 ciclos; por outro lado, para os pacientes de Nice, o valor de referência inicial de 39 ciclos foi mantido. Um paciente apresentando valor de 37 ciclos era então declarado negativo em Marselha (sob hidroxicloroquina) mas positivo em Nice (grupo de controle sem hidroxicloroquina). Os dois grupos de pacientes foram então analisados com critérios diferentes para permitir concluir falsamente a eficácia da molécula”, revela a publicação.

“Para fazê-lo, o professor Didier Raoult ‘afastou os biomédicos do cronograma para que tirem folga’ e em contrapartida implementou um programa para automatizar a declaração dos resultados no programa da AP-HM [com um ciclo de amplificação diferente favorecendo a negatividade] sem uma pré-validação dos biomédicos”.

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A publicação traz relatos de uma midiatização reforçada no interior do laboratório, “com a difusão contínua de vídeos de Didier Raoult”. O clima descrito era de culto da personalidade. “Se perguntas são feitas, a resposta é geralmente ‘cala boca, você não é pago para refletir’, testemunha um outro membro do IHU”.

“É nesse clima que as equipes ouvidas assistiram à falsificação dos resultados biológicos permitindo concluir o efeito benéfico da hidroxicloroquina, enviesando os resultados dos testes PCR em um estudo que compara pacientes do IHU, que fazem o tratamento, e pacientes do hospital universitário de Nice, que não o fazem”.

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Didier Raoult é o diretor do Institut Hospitalo-Universitaire Mediterranée Infection, localizado em Marselha, no sul da França. Foto: YouTube/IHU Méditerranée Infection


“Esses membros do IHU demoraram a depor, por temor de serem fisicamente interpelados”, diz o site. A publicação narra uma discórdia entre os membros do laboratório sobre a eficácia da hidroxicloroquina, citando o exemplo de Xavier de Lamballerie, que co-redigiu artigos com os estudos feitos em macacos infectados pelo coronavírus, indicando a ineficácia da droga.

“Como testemunhou um dos membros do IHU ao Mediapart, a visita em abril de 2020 do presidente Emmanuel Macron ao professor Didier Raoult no instituto acentuou a sensação de que o patrão era intocável”.

“As intimidações vêm também do grupo do professor. A ira de seu adjunto Michel Drancourt é frequente e temida”, aponta. Os relatos são de reações de lágrimas, violência, agressões. “O professor de biologia Éric Chabrière, muito próximo do professor (Raoult) também toca o terror.. A publicação cita pichações como “collabo (em alusão ao termo usado para colaboracionistas com o nazismo)” na casa do novo diretor da rede regional de hospitais públicos, acusado de querer demitir Raoult.

“As instâncias que supostamente devem fiscalizar o IHU, como a universidade ou IRD – Instituto de pesquisa para o desenvolvimento, não fizeram nada contra as práticas de Raoult, o que elas não podiam ignorar”, teria relatado uma das fontes.

O clima descrito é de desânimo e de abandono por parte das instituições francesas, e de pessimismo depois que Raoult deixar o comando do laboratório, já que seus “braços direitos” deverão sucedê-lo.

Segundo a reportagem, parte dos professores de Medicina da região apontaram a necessidade de não esperar pela conclusão da investigação para que medidas sejam adotadas. Os órgãos fiscalizadores teriam sido solicitados em setembro do ano passado, mas só depois de mais de um ano é que os profissionais foram ouvidos.

De acordo com o Mediapart, o Inserm, o IRD e François Crémieux, novo diretor da rede regional de hospitais de Marselha, não responderam à reportagem e a Universidade Aix-Marseille disse não comentar casos sob investigação.

Convocado, Raoult depôs recentemente a um conselho de medicina francês, acusado de atentar à deontologia da profissão. Ele também é acusado de charlatanismo por outro conselho de medicina por sua defesa da hidroxicloroquina para a Covid-19.