Exclusivo: Relatório final de inquérito do Guarujá traz contradições e gera desconfiança da versão oficial da polícia

Atualizado em 7 de agosto de 2023 às 15:30
Inicío do relatório final da Polícia Civil sobre a morte do soldado Patrick Reis no Guarujá (crédito: Polícia Civil de SP)

O delegado de polícia titular do município do Guarujá (SP), Antonio Sucuripa Neto, concluiu na última sexta-feira (4) o relatório final do inquérito que investiga a morte do policial militar da ROTA Patrick Bastos Reis, morto no último dia 27 com um tiro de arma de fogo que entrou em seu corpo pelo ombro esquerdo, atravessou o pulmão esquerdo e terminou por se alojar em seu pulmão direito. O DCM teve acesso ao material.

No documento, a autoridade policial concluiu que seis pessoas agiram em concurso de ação para cometer os crimes de homicídio doloso (contra o policial Patrick), tentativa de homicídio (contra o policial Fabiano Oliveira Marin Alfaya, atingido por outro projétil em sua mão esquerda) e associação para o tráfico. Dos seis acusados,  Erickson David Silva, conhecido como Deivinho, é o único apontado como o autor do disparo fatal.

Ocorre, porém, que provas testemunhais e periciais anexadas aos autos tornam a versão oficial da polícia acerca do ocorrido, no mínimo, inverossímil e muito improvável, gerando a desconfiança de que há pontos em que os policiais que narraram as circunstâncias do crime teriam faltado com a verdade, conforme se verá a seguir.

Leia mais:

::Exclusivo: Polícia descumpre norma e expõe testemunha no Guarujá a risco de assassinato pelo tráfico

::Exclusivo: PM usou “delação” de esposa e amigos para prender suspeitos no Guarujá, e Defensoria vê coação::

::Exclusivo: STJ vê coação ilegal e manda polícia soltar uma das presas no Guarujá::

Viaturas passam ilesas em tiroteio, e bala que atingiu mão de soldado desaparece

Na noite do dia 27 de julho (data do crime), duas viaturas da ROTA estavam dentro da comunidade da Vila Júlia, no Guarujá. Os policiais que estavam em seu interior (eram oito, quatro em cada uma, contando o soldado assassinado) deram depoimentos praticamente idênticos acerca do ocorrido. Leia abaixo o que foi concedido por Fabiano Alfaya, atingido por um tiro na mão esquerda, com destaques inseridos pela reportagem do DCM, que manteve a grafia original (e incorreta) do documento policial:

“A vítima FABIANO OLIVEIRA MARIN ALFAYA, Policial Militar da ROTA( fls. 80 e 95) (ouvido logo após os fatos havidos na Vila Júlia – vítima da Lesão Corporal) declarou quando dos fatos que patrulhava com sua guarnição no local dos fatos quando em determinado momento, realizavam manobra para virar a viatura sentido contrário e perceberam vários disparos de arma de fogo; Que o declarante e seu colega Patrick, também atingido, estava no banco de trás da viatura sendo declarante terceiro homem e Patrick quarto homem, após os barulhos dos disparos, o depoente percebeu que havia sido atingida sua mão esquerda, imediatamente Patrick alegou ter sido alvejado, momento em que ouviram nova rajada de tiros.

Destarte a guarnição iniciou deslocamento em velocidade a fim de procurar abrigo cessando a injusta agressão. Após a verificação dos ferimentos a guarnição optou por conduzir os policiais alvejados ao PAM rodoviária onde tiveram os primeiros atendimentos médicos. Aduz o depoente que estavam embarcados na viatura no momento dos disparos e que nenhum disparo atingiu a viatura ou seu interior. Declara também que a princípio não há indícios da autoria delitiva dos fatos vez que sequer viram os atiradores apenas escutar (SIC) uns barulhos dos tiros.”

Outras testemunhas ouvidas no inquérito narram ter ouvido entre seis e dez tiros disparados supostamente contra as viaturas da ROTA. Na viatura em que estavam as vítimas, Patrick se encontrava no banco de trás, no lado esquerdo. Veja abaixo imagem anexada ao laudo necroscópico, com destaque para o local de entrada do projétil e seu caminho percorrido no corpo da vítima fatal, se deslocando em trajetória descendente, de cima para baixo.

Trecho de laudo necroscópico feito no corpo do soldado Patrick (crédito: Polícia Civil de SP)

Já Fabiano, atingido na mão esquerda, estava também no banco de trás, mas do lado direito. A bala que atingiu este policial jamais foi encontrada. Ela teria, então, que ter passado pela janela esquerda do carro, atingido a sua mão e saído da viatura pela janela direita, sem deixar qualquer vestígio no camburão.

O advogado criminalista André Lozano Andrade, do escritório Lozano Barranquera Advocacia, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal, e autor do livro “Populismo penal: comunicação, manipulação política e democracia”, analisando o relatório final do inquérito e os documentos a ele anexados, disse ao DCM:

“Há questões estranhas em torno do caso. Uma delas é a ausência de marcas de projéteis nas viaturas. Todos os policiais dizem que foram feitos vários disparos contra os veículos. Tivesse sido assim, seria esperado que houvesse marcas de furos ou presenças de balas na viatura.

O mais estranho é o tiro na mão do policial Fabiano. Para ter atingido a mão da vítima sem que tenha gerado qualquer marca na lataria, considerando que os projéteis chegaram à viatura em uma trajetória de cima para baixo, como mostra o laudo do IML, o policial precisaria estar com a mão para fora da janela e acima da altura do teto da lataria, isso enquanto fugiam de uma rajada de tiros. É algo muito difícil de explicar, considerando ainda que foi a sua mão esquerda a que foi atingida, e ele estava sentado do lado direito do banco de trás.”  

Então, para que seja correspondente aos fatos a versão da polícia, o soldado Fabiano, o mais provável seria que o soldado estivesse colocando sua mão esquerda para fora da janela e acima da altura do teto da viatura no momento que era alvo de disparos de armas de fogo, fazendo um exercício de contorcionismo para tanto, sabe-se lá por qual motivo, considerando que era o seu braço direito o que estava ao lado da janela.

A Polícia Civil já concluiu seu relatório final, mas nele não consta o exame pericial na mão do policial Fabiano. Não se sabe ainda nem mesmo qual tipo de projétil a atingiu, ou de qual arma foi desferido. A arma que a polícia afirma ter sido a do crime, aliás, é outro ponto de difícil compreensão na narrativa encampada pelas autoridades para explicar o ocorrido.

A arma do crime que não se encaixa na descrição das testemunhas

A pistola encontrada pela polícia, que seria a arma do crime, graças ao depoimento de uma testemunha, em teoria, voluntária, que levou os policiais até o local onde ela estava escondida (crédito: Arte DCM/Fernando Miller/Polícia Civil do Estado de SP)

De acordo com o relatório da Polícia Civil, os investigadores encontraram a suposta arma do crime (imagem acima) graças ao depoimento voluntário (feito sem estar sob qualquer forma de tortura ou coação) de um usuário de drogas que era frequentador do ponto de venda de entorpecentes de onde teriam partido os disparos.

Essa testemunha teria testemunhado à polícia por livre e espontânea vontade para denunciar os traficantes que lhe vendiam droga. Destemido, o usuário de drogas teria contado ainda que o suspeito Deivinho estava armado com uma pistola prateada no momento do crime, e depois a teria deixado próxima a um corrégo que passa pela comunidade, onde posteriormente os policiais teriam encontrado o artefato.

Veja, abaixo, trecho do depoimento “voluntário” da testemunha (que, aliás, deveria ter tido seus dados protegidos no inquérito, mas não teve. Para saber mais, clique aqui), com destaques inseridos pela reportagem do DCM:

“A testemunha Protegida Provimento 32 ALPHA fls 233 informou ser morador do bairro da Vila Julia, residindo perto do local em que os disparos ocorreram que deram cabo a vida do Policial Militar da ROTA. No dia 27 de Julho a noite, depois das 22:00 horas foi até a biqueira da Seringueira para comprar drogas e, neste local estavam MAZAROPI, exercendo ele a função de RIPA (vendendo drogas) e DEIVINHO exercendo a função de SEGURANÇA ARMADA.

Após entrar em sua casa ouviu disparos de arma de fogo e uma grande movimentação de viaturas. Nos fundos de sua casa, em um córrego viu um armamento, tipo pistola prateada, semelhante à verificada pouco antes na mão de DEIVINHO, porém não pode afirmar que foi DEIVINHO quem efetuou os disparos, pois não estava presente na hora que isso ocorreu.” 

Trecho de depoimento de testemunha que afirma que Deivinho portava uma pistola prateada, que teria sido deixada em um corrégo (crédito: Polícia Civil de SP)

Pois bem. Ocorre, no entanto, que só existe uma testemunha que afirma que Deivinho quem efetuou os disparos. É este testemunho a única prova que possui a polícia para afirmar que foi Deivinho quem efetuou os disparos.

Trata-se de MARCO DE ASSIS SILVA (vulgo MAZAROPI), outro dos suspeitos presos pela polícia, acusado de ser parte da quadrilha que trafica drogas no local do crime (Já Deivinho, em seu depoimento – a que o DCM também teve acesso -, afirma que não estava portando arma nenhuma, e que a pessoa que estava armada no momento dos disparos era Mazaropi, o mesmo que o acusa de ter sido o autor dos tiros).

Pois bem. Ainda de acordo com os laudos periciais, a pistola encontrada no córrego e que seria de Deivinho estava com 15 balas intactas em seu pente, quantidade máxima que ela pode carregar. Ou seja, para ser possível que os fatos tenham se dado como afirma a polícia, o acusado teria que ter recarregado toda a pistola com balas novas antes de deixá-la no córrego.

As 15 balas intactas encontradas pela polícia denteo do pente da suposta arma do crime (crédito: Polícia Civil de SP)

E isso não é tudo. No depoimento de Mazaropi (o único, repita-se, que afirma ter visto Deivinho atirando), o acusado afirma que a pistola em questão não tinha as características dessa que foi apresentada pela polícia, que é prateada e tem um pente capaz de armazenar 15 projéteis.

De acordo com Mazaropi e outras testemunhas da polícia, a pistola que ficava no ponto de venda de drogas à disposição do funcionário da quadrilha que estivesse fazendo a segurança era uma Taurus G2C 9 milímetros, que possui espaço para apenas 12 projéteis em seu pente. Além disso, ela não teria cano prateado, mas sim preto, e o seu cabo seria marron, em total diferença em relação ao artefato apresentado pelos policiais.

Com a entrega do relatório final, a Polícia Civil encerra seus trabalhos no caso, restando apenas enviar ao Ministério Público o resultado dos exames de balística, que ainda não ficaram prontos, e o resultado do exame pericial na mão ferida do policial Fabiano, se é que este foi feito.

Agora, caberá aos promotores públicos paulistas decidirem se o material produzido na investigação policial é suficiente e digno de confiança para que possam ser apresentadas as denúncias à Justiça de São Paulo (as imagens das câmeras dos policiais envolvidos na ocorrência, já se sabe, desapareceram). Quem viver, verá.